1/01/2008

Orelha
Raul Fiker


Desde a Poética de Aristóteles, a complexidade do enredo não tem muita compatibilidade com a profundidade psicológica e densidade do personagem. A literatura policial (de ficção científica, fantástica, etc.) é um exemplo emblemático. Aqui, o que importa é o enredo, a trama, onde reside a complexidade, e não o herói (ou anti-herói no caso em questão), o detetive ou elemento detetivesco, cuja psicologia não pode se aprofundar muito, a não ser às expensas da trama. Se o detetive for mais Raskolnikov que Mike Hammer, a obra já não é um conto ou romance policial, mas “literatura” (no mau sentido).
Mas a literatura (no bom sentido) se faz no que tem de melhor na exceção, do desrespeito às regras, obsoletizando-as e criando a obra nova, específica, que vai abrir seus próprios caminhos.
Não é sempre, não é fácil, mas Sérgio Pinheiro Lopes não é um escritor qualquer: suas tramas são ricas, seus personagens, densos; seus contos policiais, enfim, são contra a lei. Suas tramas, sobretudo, são de um realismo forte, mas bem urdidas.
Não apenas bem urdidas, mas narradas com maestria. Sua linguagem – sempre um belo achado, sempre o termo certo, sempre o humor terrível que dela emana – flui vertiginosamente. Os eventos são brutais e rápidos. Os retratos feitos a pinceladas abruptas, mas certeiras. Os diálogos compõem uma delicada, mas fatal, esgrima, e é através deles e da introspecção dos personagens que o todo se encaixa com fluidez..
E se fluidez é uma das chaves do mundo de Edu, Karen e do Dr. Brandão, desta escrita notoriamente deliciosa, a outra é o humor. O humor que permeia os personagens, as situações, os diálogos, sobretudo no que eles têm de mais terrível. Um humor específico, a um tempo truculento e sutil – como a ação, como os personagens, como a linguagem, principalmente nas ruminações de seus anti-heróis, que ficam conosco bem depois da leitura.
Fogo Paulista é narrativa policial de primeira. E literatura de qualidade, no bom sentido. Por outro lado, se conheço o Sérgio, parafraseando-o aqui, “isso não foi nada”, ele vai reincidir, e “a próxima vai ser ainda melhor”.