1/01/2008

Orelha
Raul Fiker


Desde a Poética de Aristóteles, a complexidade do enredo não tem muita compatibilidade com a profundidade psicológica e densidade do personagem. A literatura policial (de ficção científica, fantástica, etc.) é um exemplo emblemático. Aqui, o que importa é o enredo, a trama, onde reside a complexidade, e não o herói (ou anti-herói no caso em questão), o detetive ou elemento detetivesco, cuja psicologia não pode se aprofundar muito, a não ser às expensas da trama. Se o detetive for mais Raskolnikov que Mike Hammer, a obra já não é um conto ou romance policial, mas “literatura” (no mau sentido).
Mas a literatura (no bom sentido) se faz no que tem de melhor na exceção, do desrespeito às regras, obsoletizando-as e criando a obra nova, específica, que vai abrir seus próprios caminhos.
Não é sempre, não é fácil, mas Sérgio Pinheiro Lopes não é um escritor qualquer: suas tramas são ricas, seus personagens, densos; seus contos policiais, enfim, são contra a lei. Suas tramas, sobretudo, são de um realismo forte, mas bem urdidas.
Não apenas bem urdidas, mas narradas com maestria. Sua linguagem – sempre um belo achado, sempre o termo certo, sempre o humor terrível que dela emana – flui vertiginosamente. Os eventos são brutais e rápidos. Os retratos feitos a pinceladas abruptas, mas certeiras. Os diálogos compõem uma delicada, mas fatal, esgrima, e é através deles e da introspecção dos personagens que o todo se encaixa com fluidez..
E se fluidez é uma das chaves do mundo de Edu, Karen e do Dr. Brandão, desta escrita notoriamente deliciosa, a outra é o humor. O humor que permeia os personagens, as situações, os diálogos, sobretudo no que eles têm de mais terrível. Um humor específico, a um tempo truculento e sutil – como a ação, como os personagens, como a linguagem, principalmente nas ruminações de seus anti-heróis, que ficam conosco bem depois da leitura.
Fogo Paulista é narrativa policial de primeira. E literatura de qualidade, no bom sentido. Por outro lado, se conheço o Sérgio, parafraseando-o aqui, “isso não foi nada”, ele vai reincidir, e “a próxima vai ser ainda melhor”.

Fogo Paulista


Eram sete e meia da noite quando atravessei a rua molhada debaixo de garoa e entrei no saguão do prédio. O porteiro estava assistindo novela em uma TV em cima do balcão. Resmunguei um “Ba noite” pra ele e fiquei esperando o elevador. Eu não estava com o melhor dos humores. O sujeito me ignorou por completo. Nem tirou os olhos da televisão. Quando cheguei no meu andar e abri a porta do elevador, vi a Karen sentada na escada, subitamente iluminada pela luz que saia do elevador. Problema. Eu nunca vou conseguir entender por que ela me procura ao menor sinal de encrenca.
“Achei que você nunca mais ia chegar em casa”, ela falou levantando e pegando a bolsa e uma pasta que estavam no degrau. “Onde você foi?”
“Como assim, onde eu fui?”
“Eu liguei pra agência as 6 e disseram que você já tinha saído”.
“Tive que passar numa produtora”, falei enquanto abria a porta e acendia a luz. Ela entrou atrás de mim e sentou no sofá. Estava em casa. Ela sempre estava em casa na minha casa. Bem, talvez fosse culpa minha. De qualquer forma dessa vez ia ser diferente.
“Qual é o galho?” Sentei na poltrona e acendi um cigarro.
“Galho nenhum. Será que não posso visitar um amigo?”, ela perguntou arregalando os olhos.
“Pra cima de mim, Karen?” Fiz uma cara cínica. “Fala logo!”
“Olha aqui, Edu. Se você não quiser ajudar, tudo bem, mas não precisa ser cínico. Como é que você sabe que é problema? E se eu tivesse vindo visitar um amigo? Com que cara você ia ficar?”
“Não sei. Mas como você não veio ‘apenas’ visitar um amigo, nós vamos ter que esperar uma outra oportunidade para ver a minha cara”. Dei um suspiro. “Desembucha, vá!”
Ela ficou me olhando sem dizer nada. Parecia triste. Se eu não a conhecesse bem era capaz de ficar com pena dela. Ela se ajeitou melhor e pescou um cigarro de dentro da bolsa. Remexeu na bolsa e tirou um isqueiro lilás e acendeu o cigarro. Deu uma tragada e soltou a fumaça pra cima.
“Estou fazendo uma matéria sobre contrabando”, ela falou finalmente.
“Você está trabalhando aonde agora?”, perguntei.
“Em lugar nenhum. É frila”.
Bom. Só me faltava essa. Ela queria que eu segurasse a mão dela numa matéria sobre contrabando.
“Por que você não procura uns assuntos menos perigosos para fazer matérias?”, perguntei um pouco indignado. “Por que têm que ser sempre, assassinato, barbaridade, contrabando?”
“Sabe que eu mesma não sei, Edu”, ela falou sincera. “Eu antes gostava de cobrir política ou então economia. Mas agora, quando resolvi fazer alguma coisa, a primeira coisa que me veio na cabeça foi crime. Acho que estou ficando louca, só me dá vontade de trabalhar com matérias que sejam sobre os que estão fora da lei”.
“É verdade que a coisa mais fácil de achar no Brasil é crime. Só tem nego barbarizando por baixo do pano. Que negócio é este de contrabando?” Foi eu fazer a pergunta para sentir que tinha falado demais.
“É o seguinte. Você sabe que o Paraguai é o segundo maior exportador de soja da América do Sul?”
“Não, mas o que têm isso?”
“Não teria nada de mais se eles plantassem soja”.
“Não plantam?!”
“Não!”
Ficamos quietos por um momento. A garoa continuava lá fora. Senti vontade de beber alguma coisa.
“Você quer um uísque?”, perguntei.
“Quero”.
Fui até a cozinha e preparei dois uísques. Foi difícil tirar o gelo do congelador. Estava na hora de degelar a geladeira. Parecia a Fortaleza da Solidão do Super-Homem aquele congelador. Voltei para a sala e dei um copo pra ela. Dei um belo gole no meu e sentei de novo. Fiquei quieto mais um pouco.
“Você não acha que vai se meter com gente graúda demais? Ainda por cima sem a cobertura de um jornal?”
“Olha, Edu. Eu estou de um jeito que tenho que arriscar um pouco e meter as caras. De repente uma matéria dessas me coloca de novo no mercado. As pessoas falam de mim e, além disso, vou me sentir mais ativa, fazendo alguma coisa. Estou precisando disso”.
“Perfeito. Agora o que te faz acreditar que eu esteja precisando arriscar a minha vida me metendo com contrabandista paraguaio por causa de soja, que é uma coisa, aliás, que eu nem sei nem pra que serve direito?”
“Ninguém vai arriscar a vida por causa de nada, Edu”, ela falou. “E eu ponho o seu nome na reportagem como colaborador, além disso, se a matéria for bem transada, talvez até sobre uma graninha pra você”.
“Muito obrigado pelo seu interesse humanitário, mas acho que meus interesses se encontram noutra direção. Meu negócio é talento e não aventura, será que você não sacou ainda?”
“Edu, o negócio não é talento, o negócio é tá rápido!”
Não pude deixar de rir. Ela tinha um jeito de desconcertar as pessoas que sempre me deixava admirado. Quando essa pessoa era eu, só conseguia rir. Era quase uma concordância.
“Tudo bem, moça, deixa eu pensar um pouco”, falei já com meio caminho andado para me meter em outra das suas aventuras sem pé nem cabeça. “Pra quem você vai vender essa reportagem?
Não sei ainda”, ela respondeu. “Na hora a gente vê!”
Contrabando pra mim era comprar uísque de caixa junto com o pessoal da agência. Isso não, isso era pra valer. Até que eu estava ficando sensato com a idade.
“Escuta, Karen”, falei pacientemente, “eu agora tenho um emprego, tenho horário, tenho coisas pra fazer, como é que eu vou poder te ajudar?”
“Você não tem férias?”
“Tenho. Daqui a sete meses”.
“Não dá pra você tirar uma semana antecipada?”
“Claro!”, eu disse, “é só chegar lá e dizer para o meu chefe, escuta estou precisando de uma semana de licença pra fazer uma reportagem sobre contrabando de soja pro Paraguai, tudo bem? Sabe o que ele vai dizer? Ele vai dizer que se eu começar a beber no horário de expediente eu vou acabar perdendo o emprego, é isso que ele vai dizer”, falei, dei um gole no uísque e encostei de volta na poltrona.
“Quer dizer que você não quer me ajudar”, ela falou indignada. Parecia não ter prestado atenção numa palavra do que eu tinha dito.
“Não, acho que não”, falei um pouco melancólico. “Não sou a mesma pessoa mais. De repente parece que as coisas ficaram um pouco mais gastas do que já estavam. Os amigos mais transparentes e menos dignos desse nome. Não estou falando de você”, olhei para os olhos dela, “mas de um modo geral eu sinto que a maior parte deles são somente pessoas que se cruzam numa estrada, de passagem. E que, à medida que você vai percebendo que não pode mais adiar certas decisões, essas pessoas vão se afastando de você. Acho que não sou mais interessante. Se é que algum dia fui”.
“Nossa. Não imaginei que você estivesse deprimido desse jeito”, ela falou meio preocupada.
“Não sei se estou deprimido ou não. Acho que cansei desse personagem e não tenho outro para colocar no lugar. Acho que estou meio perdido, é isso”. Dei um bom gole no uísque.
“Que decisões são essas?”
“É muito complicado de explicar agora, preciso pensar. Preciso levar a minha vida um pouco mais a sério. Fazer somente o que deve ser feito. Eventualmente aparece uma resposta. Vou esperar”.
“Enquanto isso você não quer me fazer companhia, enquanto não se define?”, ela perguntou retomando onde havia parado.
“Não. Não quero, já disse”, falei meio exasperado. Levantei e fui para a cozinha. Mais gelo.
“O.K., Edu. Você venceu”, ela veio atrás de mim na cozinha. “Não vou mais encher o seu saco. Eu me viro sozinha, tudo bem”.
“Me desculpe, Karen. Mas ando meio sem paciência com os outros. A minha vida tá meio besta, apesar do emprego. Tenho a impressão que não consigo sair do lugar. Estou sempre recomeçando a mesma coisa de novo e de novo”.
“Acho que já vou indo”. Ela colocou o copo na pia e virou pra mim.
“Me desculpe”, falei de novo.
“Não esquenta a cabeça com isso”, ela respondeu, e me deu um tapinha carinhoso nas costas.
Ouvi o barulho da porta da frente fechando e depois a porta do elevador fazendo um barulho metálico. Fiquei um tempão ainda acordado olhando as luzes pela janela do apartamento, sentado na poltrona da sala. Fui dormir cedo. Devia ser umas dez e meia.

oooOOOooo

Era um dia como qualquer outro na vida de Afonso Brandão. Delegado de Polícia, 55 anos, viúvo*, tinha tido dois filhos*. Um, logo depois de se formar advogado, tinha morrido. Brandão não falava deste assunto*. O outro, na polícia também. Laboratorista na Polícia Científica. Uma especialidade sem muito brilho. Por outro lado, bem mais* seguro. A possibilidade de se meter em confusão era muito menor.
Um homem de estatura média, respeitável, com entradas*, os cabelos que sobraram já mais para grisalhos do que para castanhos*. Já não dava tanta importância para a aparência. Já não achava mais graça em jogar futebol com a turma, ou sair para beber uma cerveja no fim da tarde. Estava ensimesmando, ficando sem assunto. Gostava mesmo é de trabalhar na pequena oficina de marcenaria que tinha ajambrado atrás da casa. Era capaz de ficar horas ali. No começo fazia pequenos consertos na casa, arrumava isso e aquilo. Mas um dia, meio sem querer, começou a mexer num bloco e acabou fazendo um pato de madeira. Não que tenha ficado muito bem feito. Mas ele achou que ficou bom. Deu o nome de Alex a esse primeiro pato. Alex morava na prateleira mais alta da pequena oficina. Depois do Alex foi melhorando, sofisticando, fazendo patos cada vez mais caprichados. Dava-os de presente de aniversário, de Natal. Quase todos seus amigos já tinham um. Ele não se importava. Gostava de faze-los e pronto. Era seu hobby. Ali se esquecia da vida, da violência, da rotina massacrante e meio sem sentido de sua existência.
Enfim, era mais um dia como outro qualquer para Afonso Brandão. Chegou na delegacia às 9 da manhã e se inteirou de tudo o que havia acontecido no plantão noturno. O de sempre: brigas em porta de bar, assaltos, seqüestro relâmpago, gente que teve o carro roubado, toca-fitas, essas coisas. Nada de extraordinário. O que, nos dias que correm, até que era bem extraordinário, pensando bem. Mas Afonso não estava com muita vontade de filosofar, muito menos de pensar bem sobre essas coisas. Queria apenas tirar as coisas da frente, fazer o que tinha que fazer e atravessar o dia. Passava o dia esperando a hora de esquecer o dia na sua pequena oficina de marceneiro.

oooOOOooo

Na manhã seguinte liguei pra ela.
“Quer almoçar comigo?” Estava me sentindo meio culpado por ter sido rude na noite anterior. De mais a mais ela devia estar dura, um almoço num restaurante viria em boa hora. Pelo menos era isso que eu achava. As manhãs fazem tipos como eu ficarem indevidamente otimistas.
“Você tá melhor?”, ela perguntou do outro lado.
“É, acho que sim”, respondi. “Te pago um almoço, que horas você me busca?”
“Que horas você sai?”
“Te espero lá embaixo meio-dia e meia, tá bom pra você?”
“Tudo bem”.
Nos despedimos. Eu estava trabalhando numa campanha institucional para uma fábrica de bebidas. Eles queriam uma coisa sóbria. As coisas que a gente faz pra sobreviver.
Ao meio dia e vinte eu tomei um cafezinho de garrafa térmica e desci. O dia estava meio incerto, nublado com uns rasgos de sol aqui e ali. Lá pros lados do Jaraguá tinham umas nuvens ameaçadoras.
Vi o carro dela chacoalhando a um quarteirão de distância. Com um fusca velho desses, ela nem precisaria dizer que estava desempregada, tava na cara.
“Oi”.
“Tudo bem?”, perguntei, enquanto fechava a porta.
“Não fechou direito”, ela falou. Abri e fechei com mais força.
“Escuta, Edu, eu tenho que dar uma passadinha no banco, mas é coisa rápida. Você tem hora pra voltar?”
“Se é pelo almoço não precisa. Eu pago”.
“Aceito, Mas não é por isso. É que eu tenho que pegar um talão de cheques e pagar uma conta de luz. Aonde a gente vai?”
“No caminho a gente resolve. Onde é seu banco?”, perguntei. Quem sabe tem alguma coisa lá perto”.
“Na Brigadeiro perto da Paulista”.
“A gente podia ir no Roma lá na Angélica. Você está a fim de comida italiana?”
“Acho ótimo”, ela disse. “A cavalo dado não se olha os dentes”.
Paramos no estacionamento do banco e entramos pela porta lateral. Assim que entrei fui agarrado pelo braço violentamente e empurrado pra cima de um monte de gente assustada num canto da agência. Dei de encontrão num crioulinho que quase desmontou. A Karen caiu por cima de um senhor de óculos”.
“Fica quieto senão eu queimo!” O sujeito que tinha me empurrado falou apontando um enorme revolver. Ele estava com uma dessas máscaras de criança com a cara do Mickey. Eu nunca fui muito com a cara do Mickey”.
“O banco está sendo assaltado pela família Disney”, a Karen falou meio entre os dentes e baixinho, “e em pleno horário de almoço!”
Era verdade. Tinha o Pateta e o Pato Donald também. O Pateta estava do outro lado da agência e o Donald estava limpando os caixas. Ele tinha parado quando nós entramos, mas continuou logo em seguida.
“Acho que o Mickey não foi com a minha cara”, falei pra Karen.
“Quietos!”, Mickey balançou o revolver.


oooOOOooo


A chamada chegou por volta do meio-dia. Assalto à banco na hora do almoço em plena Brigadeiro Luis Antonio.
O delegado Afonso Brandão entrou em piloto automático. Pegou o paletó nas costas da cadeira e começou a gritar ordens. Saíram em quatro viaturas. Quando chegaram já havia duas viaturas da PM. O sargento veio falar com ele.
O Sargento era um sujeito de uns quarenta e poucos anos, já meio fora de forma. Na plaquinha do peito dele estava escrito ‘Sgto. Cristóvão”
“Vamos cercar”, disse o delegado Brandão. “Existe saída pelos fundos?”, Perguntou.
“Não senhor”, respondeu o sargento.
“É melhor chamar o helicóptero também, Sandro”, disse o delegado para o investigador que estava a seu lado.
Estavam todos de armas em punho. Alguns PMs portavam submetralhadoras. As viaturas todas de portas abertas, para proteção em caso de tiroteio.
“Rui, providencie um cordão para manter as pessoas longe”, ordenou o delegado a um outro investigador. “E me traga um megafone o mais depressa possível”.
Mais viaturas iam chegando a todo o momento. Chegavam com os motores rugindo, cantando os pneus, abrindo caminho em meio ao trânsito já impossivelmente engarrafado naquela altura dos acontecimentos, subindo nas calçadas, com as sirenes fazendo um alarido ensurdecedor. Logo a seguir já se ouvia o helicóptero da polícia. Ele parou sobre a agência do banco, a uns cinqüenta metros de altura.
“Quantas pessoas têm lá dentro”, perguntou o delegado ao sargento.
“Não sabemos ao certo” ele respondeu. “Talvez umas vinte ou vinte e cinco”.
“E os ladrões, quantos são?”
“Uns três. Quatro no máximo”, respondeu o sargento.
Bem. A agência estava cercada. O helicóptero veria uma tentativa de fuga pelo telhado. Agora era negociar. “Cadê a porra do megafone”, gritou o delegado irritado pra ninguém em específico.

oooOOOooo

Eu só percebi as sirenes quando elas já estavam chegando na porta do banco. De repente era sirene pra todo o lado.
“É a polícia!”, falou o Pateta. Parecia com medo. “Polícia pra todo lado”
“Se invadir eu queimo eles!” Mickey apontava o revolver pra mim. Logo pra mim!!!
“Vamos negociar com eles”, a Karen falou. “Eles não vão ser loucos de invadir, nem vocês podem sair na louca, senão eles fuzilam”.
“Cala a boca, e não se mete!” O Mickey apontou pra ela agora.
“Eles tem que deixar a gente se mandar”, falou o Pateta. “Vamos mandar ela negociar com os homens. Dizer que se invadir, a gente queima todo mundo, porra!”, quase gritou o Pateta. Ele andava para lá e para cá rente ao balcão dos caixas. O Pato Donald ainda não tinha falado nada. Estava imóvel atrás do balcão.
Eu tinha passado boa parte da minha vida tentando evitar que a Karen se metesse onde não era chamada. Tudo inútil. Nem sob a mira de um revolver ela fechava a matraca.
“Vocês estão cercados!” Era uma voz metálica com uns guinchos de microfonia. “Saiam com as mãos pra cima!”
“Manda a mina sair e dizer que se quiser invadir vai ter!”, falou Pato Donald pela primeira vez. Não sei por que eu esperava uma voz esganiçada.
“Me dá um lenço, Edu”, a Karen Pediu.
“Não tenho lenço”, respondi aflito. O senhor de óculos deu um lenço pra ela. Mais pra trás tinha uma senhora que falava “Ai meu Deus” sem parar. O Pateta não esperou a concordância dos outros e foi levando a Karen em direção à porta do banco.
“Fala que a gente quer um pinote com o tanque cheio!” Pateta disse enquanto se escondia atrás dela.
Era possível ouvir a Karen falando do lado de fora, mas não dava para distinguir as palavras dela.
“Libertem os reféns e saiam de mãos pra cima”, disse a voz do megafone.
A Karen logo voltou para dentro. Mickey tinha se aproximado e estava perto do Pateta, um de cada lado da porta. O Pato Donald ficou apontando uma arma pra nós.
“E aí?”, Pateta segurou o pulso dela.
“Você ouviu. Eles falaram que primeiro vocês têm que libertar os reféns”, disse ela.
“Porra nenhuma! Eles estão pensando que a gente é mané?” Mickey já meio transtornado. “Vai lá fora e diz pra eles quer se não derem um carro, vamos apagar um a cada meia hora!”
Todo mundo ficou tenso. Era a primeira ameaça de morte concreta. A “Ai meu Deus” continuava a todo vapor. O senhor de óculos suava sem parar e cada vez mais. Estávamos todos amontoados em volta de uma mesa com uma plaquinha de “Abertura de Contas”. Devíamos ser umas trinta pessoas. A maioria estava aterrorizada demais para falar qualquer coisa. O crioulinho era o único que parecia estar se divertindo com aquilo tudo. Estava com os olhos arregalados. Eu não estava me divertindo nada. Já estava começando a ver aqueles tipos infantis começando a matar um por um. Ia ser péssimo como propaganda para a Disney. Pelo menos ainda não tinha perdido o humor.
“Vai lá e fala isso pra eles”, disse o Pateta empurrando a Karen pelo ombro. Ela foi.
“Soltem as mulheres e as crianças enquanto providenciamos o carro”, disse a voz no megafone.
A Karen entrou de volta.
Dava pra ver por uma fresta na janela que a movimentação lá fora era impressionante. Carros de polícia pra tudo quanto é lado e uma pequena multidão mais para trás um pouco cá. Ouvi um helicóptero sobrevoando o banco.
“Não tem criança nenhuma aqui dentro”, disse o Mickey. A voz contrastava com a cara sorridente da máscara.
“E eu?”, perguntou o crioulinho tímido.
“Cala a boca! Você não é criança, você é boy!”, gritou o Pateta com cara idiota, mas com um jeito assassino.
“Vamos soltar as mulheres!”, disse o Pato Donald de olho arregalado. “É melhor mesmo, mulher só serve pra encher o saco”.
“Menos ela”, disse o Mickey apontando pra Karen. “Ela fica de mensageira”.
O Donald virou pra mulher do “Ai meu Deus” e disse: “Fala para eles que quando eles derem o carro a gente solta o resto”.
A mulher olhava para ele com o olhar ausente. Ele repetiu a ordem para uma mulher magra de cabelos escorridos que estava um pouco mais atrás e parecia mais calma. Ela fez que sim com a cabeça.
“Você tá louco?”, falou o Mickey, virando pra ele. “Na hora que a gente soltar o resto eles passam fogo na gente”.
“A gente pega dois pra escudo e se não houver perseguição a gente solta depois”, respondeu o Pato.
O debate continuou mais um pouco e finalmente Pateta decidiu.
“Vamos soltar as mulheres e acabou”, decretou ele. “E já, que quanto mais tempo a gente ficar aqui de bobeira, pior”.
O Donald juntou as mulheres, umas oito ao todo e, escondido atrás delas, levou o grupo até a porta. Elas saíram uma a uma. “Ai meu Deus” na frente.
Corre-corre lá fora. O megafone gritou:
“Não atirem! Não atirem! São as mulheres!”
O crioulinho ficou. Já não estava mais se divertindo. Era olhar pra ele e ver que não era mais criança mesmo. Só neste momento é que pensei: A reportagem sobre crime vai sair afinal. Só não vai ser sobre contrabando. Pelo menos vai ser mais fácil de explicar lá na agência.

oooOOOooo

Até que as coisas estavam evoluindo, pensou o delegado Brandão. Pelo menos já tiramos as mulheres lá de dentro.
Estavam sendo atendidas e encaminhadas por mulheres policiais militares.
Mas o bate-boca entre os policiais já tinha começado. Os que queriam invadir versus os que queriam vencer pelo cansaço. De um lado Polícia Militar, de outro, Polícia Civil. Era sempre assim. Onde já se viu uma coisa dessas. Restos da ditadura. Como é que podia haver duas polícias trabalhando separadas nunca pode entender. Não podia dar certo. E não dava, é claro. Viviam brigando. Dois comandos, duas estruturas. Ciumeiras. Um querendo levantar os podres da outra. Uma querendo aparecer mais do que a outra. E a bandidagem correndo solta. A violência aumentando. O tráfico aumentando. Falta dinheiro, falta salário. Falta tudo.
Como sempre não prestou muita atenção. Quem comandava ali era ele e já tinha decidido umas coisas. Não podia invadir, ia morrer gente na certa. Não podia ficar ali eternamente também. Bandido nervoso é a pior coisa. Acaba fazendo merda. Afonso Brandão não queria morte de gente inocente nas costas. Era melhor dar um carro em troca dos reféns e usar o helicóptero para fazer a perseguição. Podia interceptá-los em um lugar mais vazio, com menos chance de atingir pessoas desavisadas. Não podia começar um tiroteio na Brigadeiro Luis Antonio. Isso de jeito nenhum. Um carro em troca dos reféns. Era assim que ia ser.

oooOOOooo

Lá fora o maior reboliço. Dentro também. Eu continuava meio encostado na mesa. O crioulinho estava sentado no chão meio conformado, como se tivessem mandado ele ao banco e a fila fosse grande demais. O velho de óculos continuava a suar muito. A Karen conversava com o Pato Donald. Ela não parecia estar com medo. Ela nunca tinha medo. Eu desconfio que ela gosta dessas situações. Mandaram ela sair de novo para apressar as coisas. Queriam logo o carro. Estava todo mundo muito nervoso. Chegava mais polícia o tempo todo. Só se ouvia barulho de sirenes chegando. O helicóptero parecia ter estacionado lá em cima.
A Karen voltou lá para fora para cobrar o carro.
O megafone disse que já estava sendo providenciado. Mas não iam dar o carro antes de soltarem os reféns.
Ela voltou para dentro. Ninguém podia jurar que não era uma armadilha. Karen não achava que eles iriam tentar invadir. A família Disney já não tinha tanta certeza. A televisão já estava lá fora. Na opinião dela isto por um lado poderia garantir que tudo iria correr bem, por outro, a polícia poderia querer se mostrar eficiente, ainda mais agora que o ibope dela andava meio baixo por conta de uma recente invasão na Penitenciária do Estado. Os bandidos perguntavam as mesmas coisas várias vezes e sem parar. Estavam muito nervosos. A Karen, por sua vez, também falava muito rápido e entremeava as informações que dava com perguntas sobre as coisas mais variadas.
“Você têm filhos?”
O Pateta: “Tenho três com a patroa, fora os PF”.
“Isso não interessa, meu!” Pato Donald. “Que carro que eles vão arrumar?”
“Acho que é um Santana”, respondeu a Karen.
“A gente quer uma Blazer, é melhor pra tranco! Vai lá dizer pra eles que a gente só sai de Blazer, disse o Mickey.
“Não começa a inventar, qualquer porra serve!”, cuspiu o Pateta de volta.
“Qualquer porra, não! Tem que ser carro com motor de responsa. Carro pequeno não!”, devolveu ríspido o Mickey.
“Eu pedi para eles arrumarem uma Blazer!”, a Karen falou, não sei se era verdade ou não. Mas serviu para encerrar o assunto. Pelo menos por enquanto. “O que é que vocês vão fazer com a gente? Vão levar todo mundo?”, perguntou a Karen, aos poucos extraindo informações.
“Acho que vamos ter que liberar essa galera”, respondeu o Mickey. “Mas pode ser perigo”.
“Você e o magrelo ali vão ficar”, disse o Pateta apontando para mim.
A Karen pareceu satisfeita com esse arranjo. O magrelo aqui também, afinal não me sentiria bem largando a Karen com aqueles caras. Alivio coletivo do povo que ia ser liberado.
Achei que talvez dessem o carro. Eu pessoalmente achava que eles iam armar alguma cilada com isso. Não dava pra saber o que a Karen achava. A atitude dela era de que ia dar tudo certo. A família Disney estava preocupada e nervosa, mas não tinham outra escolha. Tinham que arriscar.
O megafone cobrou a liberação dos reféns. Se não, não ia ter carro nenhum. A Karen saiu lá para fora para dar a notícia da liberação e avisar que íamos ficar nós dois como garantia. Entrou de volta sem resposta do megafone.
“É melhor libertarem os reféns”, esganiçou o megafone, insistindo.

oooOOOooo

Ele tinha que ser duro, inflexível. Ou libertavam as pessoas ou não tinha negócio. Era preciso que cada concessão correspondesse a um ganho. Esse era o segredo da negociação. E tinha que ter calma. Muita calma.
Já tinha mandado providenciar uma Blazer e deixar na espera na Al. Santos. Deixa eles irem embora daqui, pra longe do reboliço. Depois a gente vê. Mandou também que várias viaturas seguissem para as grandes avenidas e aguardassem. Nove de Julho, Rubem Berta, Paulista, Brasil e Consolação. Da Civil e da Militar. Ia parecer que ninguém estava seguindo. Só o helicóptero ia seguir em um primeiro momento, e mesmo assim bem de cima.
A cada tanto tempo saia a moça para fora para negociar. Até que as coisas estavam andando. Já tinha recebido as informações dadas pelas mulheres libertadas. Máscaras de personagens de revista em quadrinhos. Os caras não tinham mais nada pra inventar. De onde será que tiravam essas idéias de jerico. Deve ser de filme americano, é claro. Coisa idiota sempre vem de filme americano. Todos armados até os dentes e já tinham pegado o dinheiro. Não deviam ser profissionais. Profissional usa aqueles gorros de esquiar, não máscara de festa infantil.

oooOOOooo

O Mickey juntou os reféns e foi empurrando-os até a porta. Pelo visto ia ser como a primeira leva. Eles começaram a sair um a um.
“Você sai também logo depois e avisa que vai ficar com o magrelo aqui”, disse o Pateta para a Karen.
“Tudo bem”, respondeu a Karen.
Eu fiquei na minha. Acendi um cigarro. A excitação era tanta que tinha até esquecido de fumar. Em todo o caso não era um bom método de parar com o vício. Muito perigoso.
A Karen saiu e voltou. “Eles vão mandar o carro”, ela disse.
“Volta lá fora e diz que se houver perseguição a gente queima vocês”, de novo o Pateta para a Karen.
Ela foi e voltou novamente.
Dessa vez não houve resposta do megafone.
“Eles disseram que tudo bem. Não vão perseguir”, ela disse.
Pararam o carro ostensivamente na porta do banco e deixaram as quatro portas da Blazer preta abertas. Tinha toda a cara de cilada, devia ter uma bomba dentro, ou então só tinha gasolina pra andar uns poucos quilômetros. Não sei o que, mas achei que alguma coisa tinha. Comecei a fazer planos de ser amigo da Karen só por telefone. Achei que ela arrumaria uma encrenca internacional qualquer a partir de grampos telefônicos ou sei lá o que. Por e-mail então. Estava começando a ficar paranóico. Se morresse nessa ia ficar muito puto com ela.
“Vocês dois também vão sair no disfarce”, falou o Pato virando pra mim e pra Karen. “Assim eles não vão saber em quem atirar”.
“Isso é absurdo!”, eu falei pela primeira vez. “A polícia vai achar que todo mundo é assaltante e vai cair matando”.
Todos olharam pra mim ao mesmo tempo. Não dava pra ver o rosto dos facínoras, mas tive a impressão nítida que eles estavam com uma cara de surpresa.
“Pode ser, mas é assim que vai ser”, disse o da cara de Mickey. “Qualquer bronca a gente coloca vocês na frente”.
“Eles não vão atirar em ninguém, Edu”, a Karen falou, “eles sabem que nós vamos de reféns”.
“Não sei não, não boto muita fé no raciocínio desses caras”.
“Fica na sua, magrelo!”, disse o Pateta.
No pacote de máscaras que os desgraçados arrumaram ainda tinham duas máscaras: uma de Minnie e outra do João Bafo de Onça. E me deram a da Minnie! É... É destino. Na minha única chance na vida de aparecer na televisão eu ia aparecer com a cara da Minnie. Ainda por cima ia ter que passar o resto da vida escutando gozação. Isso se o apelido de Minnie não grudasse. Aí sim, ia ser ótimo.
O Pateta juntou as sacolas com o dinheiro e foi ver se achava mais alguma coisa. Pegou uma calculadora de cima de uma mesa e remexeu numas gavetas. Logo voltou. A Karen não ficava má de João Bafo de Onça. Pelo reflexo no vidro achei que eu estava uma Minnie meio alta.
Saímos. Atrás dos carros do outro lado da rua uma pequena multidão em semicírculo com câmeras, revolveres, megafones e o diabo. Saímos todos juntinhos e fomos caminhando devagar até a Blazer. O Pato Donald estava com a escopeta ostensivamente espetada nas minhas costelas e o Pateta com o revolver encostado na têmpora da Karen-Bafo de Onça. O Mickey entrou primeiro e ligou o carro, logo em seguida entramos todos de uma vez no banco de trás. As portas do carro bateram com força quando Mickey arrancou, quase que no mesmo movimento, o Pateta passou para o banco da frente apoiando o pé na minha perna, mas sem descuidar muito da arma. O helicóptero estava em cima de nós.
A Brigadeiro passava em alta velocidade. Perto dos faróis, Mickey metia a mão na buzina e passava. Não sei como não batemos. Devia ser graça de São Dimas, o padroeiro dos ladrões. Só se ouvia carros brecando. Entramos na 23 de Maio com o helicóptero em nosso encalço.
“Atira na porra do helicóptero, senão a gente tá ferrado!”, gritou o Mickey.
Foi como se ele tivesse apertado um botão. O Pato Donald botou a mão pra fora e deu uns tiros pra cima a esmo. Não adiantou muito. O helicóptero continuou lá em cima.
“Posso tirar a máscara?”, a Karen perguntou e sem esperar resposta tirou a máscara e pôs no colo. Também tirei a minha. Foi um alívio arrancar aquela porcaria do rosto. Também não tinha ido com a cara da Minnie. Aliás, nunca tinha ido. Eles também tiraram a máscara. Estavam todos quietos. Os rostos me foram inesperados. O Mickey tinha uma cara de moleque e o Pateta o rosto mais amargo dos três. O Pato Donald nem precisaria ter posto a máscara pra começar, ele era a cara do Pato Donald mesmo. Estávamos todos tensos, mas agora por causa da velocidade.
“Acho que a gente se deu foi bem”, falou o Mickey com a voz nervosa, virando o rosto pra trás.
“Não sei não”, respondeu o Pato olhando pelo vidro de trás. “Acho que estão atrás da gente”.
O Pateta pôs a cara pra fora da janela, olhou pra cima e disse: “O helicóptero continua lá!” Estávamos passando pelo aeroporto e o Mickey já tinha maneirado bem a velocidade. Devíamos estar só a uns cem por hora, mais ou menos.
O Mickey perguntou para o Pato: “Tinha bastante grana?”
“Deu pra encher as sacolas. Tinha uma porrada de cem e um monte de quina no cofre”. Ele abriu uma sacola e eu e a Karen pudemos ver que estava bem recheada. Até que a profissão de ladrão têm suas compensações. Eu, por exemplo, tava correndo tanto risco quanto eles e com sorte ia, no máximo, ficar vivo. A Karen ia fazer uma reportagem de primeira página que ia ser disputada a tapa pelos jornais, sem considerar artigos para revistas mensais, entrevistas e é claro, um emprego. Nesse momento já estava ocupada em entrevistar os facínoras. Perguntava tudo, desde o porque da escolha das máscaras até as razões sócio-econômicas que os tinha levado aquela vida. Eu estava sem o menor humor. Aliás, como sempre ultimamente. Mas agora, mais calmo ouvia aquilo tudo como se não fosse comigo. De uma certa forma não era mesmo, ninguém tava nem aí comigo, tinha sido assim a minha vida inteira. Existem pessoas que estão sempre orbitando o mundo, sempre lhes falta alguma qualidade que os integre a ele. Nunca me reconheci num anúncio de televisão. Sempre me senti meio ridículo por causa disso.
A conversa no carro estava cada vez mais animada. Animada, não, eufórica. Eles tinham conseguido escapar com um monte de dinheiro. Estava tudo bem pra eles, incluindo a Karen. Todos estavam recompensados. Eu é que estava de alegre na história, um cara sem personalidade, uma espécie de contraponto ambulante pras cenas onde os outros brilhavam, tinha sido sempre assim, eu era a contraluz, o contrapé, ia ser a história de interesse humano, aquele cara que está ali por acaso sem ter nenhuma ligação direta com a ação. O transeunte, o popular daquela história do Veríssimo.
Foi aí que o Pateta viu os carros.
“Porra, tem polícia atrás de nós! Acelera esta merda!”, ele gritou.
Nem precisava ter falado. O Mickey já tinha metido o pé no acelerador.
A situação estava um horror. Só dava pra andar costurando, subindo na guia, brecando e acelerando de repente. Eu estava vendo a hora que alguma arma ia disparar por acidente. Ou então a polícia ia revidar e matar todo mundo.
“Atira neles! Atira neles!” berrou o Mickey. O pateta botou o corpo para fora da janela e deu umas rajadas. Aquela merdinha era uma metranca! Sempre achei que metralhadora era um troço grande. Não dava pra ver se tinha acertado ou não. Eu estava congelado. Não tinha coragem de olhar pra trás. Aliás, mal tinha coragem para respirar. Tive a certeza que não ia sair vivo.
“É melhor vocês se entregarem”, me ouvi dizendo.
A Karen me olhou surpresa.
“Fica na sua, magrelo!”, grasnou o ex-Pato com cara de pato.
Não sei como, mas já estávamos chegando perto de Interlagos. Só se ouvia sirenes. Parecia que todos os carros da polícia de São Paulo estavam atrás da gente.

oooOOOooo

Agora era a perseguição. Tinham saído em disparada Brigadeiro abaixo. Se continuassem nessa direção o pessoal na Brasil começaria a perseguição. Assim que eles saíram todo mundo enlouqueceu. O delegado Brandão foi para sua viatura e mandou um rádio avisando o pessoal da Brasil e resolveu ir para a Rubem Berta pela Paulista. Devia vê-los lá pela altura do Ibirapuera. Era um chute, mas era um bom chute. Dito e feito. O delegado deu um sorrisinho imperceptível. Pra alguma coisa servia ter passado a vida na polícia.
A Blazer estava bem mais rápida que os outros carros. Logo apareceriam as outras viaturas. Nem dois minutos depois ouviu as sirenes e, olhando para trás, viu as viaturas o alcançando.
Os bandidos logo perceberam que estavam sendo perseguidos e aceleraram. Ficaram mais desesperados também. Costuravam feitos maníacos, subiam na calçada, freavam, aceleravam, fechavam os outros carros e furavam os faróis. Mas as sirenes e as luzes girando nas capotas faziam com que as pessoas dessem passagem, facilitando a fuga. Mas não tinha outro jeito. Perseguição era assim mesmo. Uma esbórnia. Se ninguém batesse já ia ser lucro.
Eles começaram a atirar. E de metralhadora. Isso não era bom. Não era nada bom. Do jeito que iam as coisas, logo mais os bandidos iam começar ter lança-granada, obus, morteiro. Quem iria imaginar que os bandidos um dia iam estar mais bem armados do que a lei. E, no entanto, era exatamente o que estava acontecendo. Eles estavam sendo atacados de metralhadora.
Na frente do autódromo a Blazer entrou a direita de repente. Foi em direção à represa. Estavam sendo alcançados. Fizera bem de mandar dar pra eles uma Blazer 2.2. Não era páreo pras 4.3 turbinadas da polícia. Ao menos isso. Agora o problema era os reféns. Sabia que seria impossível controlar o tiroteio quando fossem alcançados.

oooOOOooo

Mickey entrou a direita na frente do autódromo a um milhão por hora. Achei que a porra do carro ia capotar. A polícia estava nos alcançando. Os tiros do Pateta e do Donald pelas janelas não estavam adiantando nada. Do jeito que o carro pulava e serpenteava não dava para acertar nem em parede, quanto mais na polícia. Pelo menos eles não estavam revidando. O Mickey virou à direita de novo em uma rua de terra e a Blazer quase dá um cavalo de pau. Ele mal tinha corrigido quando bateu de frente. Seco. Fomos jogados pra frente violentamente.
Foi aí que realmente começou a fuzilaria.
Eles desceram do carro, saíram correndo e atirando. A Karen e eu nos abaixamos e não saímos do carro. Eu só ouvia tiros e gritos. E sirenes. Muitas sirenes de carros chegando. O tiroteio era infernal.
Parecia que não ia acabar nunca. Mas acabou. Os tiros pararam, não a gritaria. Abri os olhos e vi a Karen já saindo do carro. Do meu lado, no chão do carro, as sacolas de dinheiro reviradas. Achei melhor sair dali.

oooOOOooo

Era assim que terminava. Com morte. Os bandidos não tinham segurado a pressão. Bateram numa árvore. Bem que eles tentaram fugir, mas sabe como é. Não deu. Assalto à banco, formação de quadrilha, seqüestro, fuga, resistência à prisão. O de sempre. Dever cumprido. Esses aí não iam mais encher o saco. Os reféns tinham escapado, o que já estava bom demais. Matar bandido não adianta, tem sempre mais bandido pra tomar o lugar dos que morrem. Mas experimenta dizer uma coisa dessas em voz alta. Chamam você de frouxo e te põem pra escanteio. Besta ele não era. Ficava na sua e ia tocando. Trinta anos de polícia tinham ensinado o delegado Afonso Brandão a não meter a mão em cumbuca. A não falar demais.
Ele gostava mesmo é da sua pequena oficina de marcenaria.
Entrou, acendeu a luz e sentou no tamborete em frente da bancada. Sempre que tinha dias assim ficava com um sentimento ruim dentro. Ficou um pouco com os olhos parados no seu primeiro pato de madeira. Alex. Deu um suspiro fundo, pegou um bloco de madeira novo e começou a trabalha-lo.
Ia tentar esquecer o dia. Como todos os dias.

oooOOOooo

A família Disney estava morta. Não quis nem ver. A Karen foi, sempre a profissional, mas voltou mais pálida. Não falou nada e eu também não perguntei. Para mim aquilo era um horror. A violência, a pobreza, tudo. São Paulo estava ficando um absurdo. Por que será que gente com mulher, filhos, amigos, time de futebol, resolve assaltar banco? Não sei. Acho que nunca vou saber. Será a miséria, a falta de educação, de oportunidade. Eu acho que o exemplo vem de cima. Dos governantes. Com tanta gente metendo a mão e se dando bem, os caras caem em tentação e vão atrás do deles. Eu não entendo nada, essa é a verdade. Estava é precisando ir pra casa e tomar um uísque. Triplo.
Depois foi como o previsto. Entrevistas, repórteres, telefonemas, parentada, amigos e etc. Um pouco depois, o esquecimento de todo o episódio. Até hoje de vez em quando um engraçadinho lembra da historia numa roda de bar entre a terceira e quarta cerveja, e algum outro solta o comentário inevitável: “E a Minnie aí no jornal”.
Da Karen não tenho tido notícia ultimamente. Sei que está trabalhando, parece que desta vez cobrindo economia numa revista semanal. Não sei como a campanha das bebidas até que saiu bem sóbria. Por coincidência, a agência ganhou a conta daquele banco outro dia. Pensei nuns conceitos interessantes envolvendo licenciamento de personagens em quadrinhos. Nem eu mesmo consegui achar graça no meu humor.
Comecei a achar que não ia encontrar a Karen tão cedo. Que talvez ela sossegasse o facho e me deixasse quieto. Mas depois pensei melhor: era bom eu ficar preparado, pois se eu conhecia bem a Karen, essa não tinha sido nada, a próxima ia ser bem pior.

Quadros de Família


Devia ser o décimo toque do telefone. Eles tocam no máximo vinte vezes até parar. E eu pago uma fortuna pra ter isso em casa, pensei. Atendi.
“Edu!”, era a voz da Karen.
Não devia ter atendido. Ninguém normal liga pra uma pessoa numa hora dessas.
“Que horas são?”, grunhi no telefone. Normalmente isso seria suficiente, mas como já disse, nenhuma pessoal normal etc, etc.
“Nove e meia”. Ela respondeu com uma voz condescendente, como se estivesse me fazendo um favor ao me acordar a essa hora.
“Eu fui dormir não faz nem quatro horas, Karen, pô...”, me lamentei com a minha melhor voz de travesseiro. “Não dá pra você me ligar mais tarde?”
“Não. Eu estou indo pra aí. Preciso falar com você”, disse e simplesmente desligou o telefone na minha cara, sem mais nem menos. Eu não atenderia a porta nem que ela estivesse vindo me oferecer um emprego! O que não era nada provável. A não ser que fosse no departamento de publicidade do jornal. Talvez fosse melhor abrir. De mais a mais ia ficar chato com os vizinhos, ela fazendo escândalo no corredor a essa hora da manhã.
Virei pro canto de novo. Dava pra dormir mais um pouco. Dona Mafalda devia estar fazendo um café. Prestei atenção. Não ouvi nenhuma Dona Mafalda. Com um sentimento fundo de perda eu me lembrei que era folga dela. A casa devia estar em ruínas. Não ia ter café. Teria que me levantar. Sentei na cama.
A minha cabeça estava pesada. Tentei me arrastar até o banheiro. Deviam ter usado minha cabeça ontem à noite para o ensaio de uma banda punk. Alguém tinha esquecido de levar embora o violino elétrico. Ele continuava nos meus ouvidos. A culpa é do álcool. Tinha que parar de beber. Tinha que parar de dormir tarde também. Mas se parasse de beber estaria com metade do caminho andado. Ou o dobro. Sei lá. Abri o chuveiro. Um banho. Um banho e meio litro de Coca-cola. E dois Ormigren. Isso!
Depois do banho, da Coca-cola e dos comprimidos me senti um pouquinho melhor. Os comprimidos estavam muito brancos. Faziam doer à cabeça. Talvez os laboratórios fizessem de propósito, pra realçar o efeito do remédio. Fiz um café e tomei uma chícara. Karen devia chegar a qualquer momento.
A campainha soou como uma trombeta anunciando o dia do Juízo Final. Uma coisa infernal.
“Isso é hora de ficar dormindo?”, ela metralhou enquanto me jogava o jornal no peito. “Olha a sua cara, Edu. Você já se viu no espelho hoje?”
“Eu não me lembro de ter te contratado como meu sargento”, rosnei pra ela enquanto fechava a porta.
“O problema é o seguinte...”, ela começou.
Não era emprego.
“Karen, por favor, me dá um tempo”, falei enquanto desabava no sofá, “eu não dormi quase nada, por que a gente não se vê à noite. Você sabe que a minha cabeça só funciona depois da uma da tarde”.
“Você não está desempregado?”, ela perguntou pondo as mãos na cintura e olhando firme pra mim. Me lembrei do seriado Combate com o Vic Morrow. Ela parecia o Vic Morrow daquele jeito.
“Justamente”, devolvi meio irritado, “ou você acha que eu chego no emprego com essa cara quando estou trabalhando?”
“Eu achei que era por isso que eles tinham te mandado embora. Não foi?”, ela disse isso e sentou na poltrona de frente pra mim. “É que eu estou com um problema, Edu. E não sei como resolver?.
De repente ela me pareceu desanimada, cansada.
“Karen, falando sério agora. Quando que você não têm problema? Por que sempre o problema vem pra mim? Você quer o que? Começar uma epidemia? Agora eu entendi! Já que eu tenho um monte de problemas, eu devo ter um baita know-how em resolver problemas, certo?”, falei meio de saco cheio.
Ela ficou muda. Só olhou pra mim com aqueles olhos de cachorro na chuva. Depois apertou os olhos e fixou em mim com ódio. Usou todo seu arsenal mais um ou dois olhares novos pra mim. Não me impressionei. Estava muito ocupado pensando se teria energias pra empurrar ela até a porta. O dia não estava começando nada bem.
“Você vai ou não vai me ouvir?”. A voz saiu surpreendentemente calma.
“Vou. Que jeito?” Era sempre assim. Depois da troca ritual de insultos, começávamos a nos dar bem. “Qual é o problema?”
“O problema é que eu acho que estão querendo me transferir para a seção de polícia do jornal”, ela disse, “estou com um caso muito estranho na mão”.
“Por que você não faz como eu?”, perguntei. “Sai do emprego e resolve todos os seus problemas”.
Ela não prestou muita atenção em mim.
“O pai de um político daqui de São Paulo foi encontrado morto com dois tiros num apartamento na Praça 14 Bis. O jornal teria dado a notícia com algum destaque, sem dúvida, mas houve pressões para que não se publicasse nada a respeito para não atrapalhar as investigações da polícia”.
“Isso não é normal quando envolve gente importante?”, falei olhando para as manchetes do jornal meio de lado.
“De certa forma é”, ela concordou, “mas não sei por que o Raul achou que tinha coisa nisso e me pediu para ver o que conseguia descobrir. Ele tem faro pra essas coisas”.
“E você descobriu o que?” Olhei para ela esperando a bomba.
“Descobri que o pai e o filho se odiavam!”, ela respondeu com uma cara de satisfação que logo murchou.
“Qual político?”, perguntei.
“Paulo Parente”, ela disse, “mas você não vai comentar isso com ninguém, promete?”
“Não, não vou comentar, fica tranqüila”, falei para acalma-la. “O Paulo Parente!!! Ele é candidato a prefeito!”
“Mais um motivo para ele não querer que mexam nisso agora”, ela falou.
“Você acha que ele matou o próprio pai?”, perguntei admirado. “Ele é de direita, está certo, mas daí até matar o próprio pai vai uma certa distância”.
“É lógico, Edu. Quem matou foi outra pessoa. Mas acho que esse ódio de família pode ter alguma relação com o caso”, ela falou.
“O.K. Conta essa história do começo”, disse, sentando melhor no sofá. “Como foi o crime?”
Eu já tinha ficado interessado. É sempre assim. As encrencas na minha vida vinham sempre atraentes como cervejas no verão.
“Parece que o pai do Paulo, que era dentista, chegou nesse prédio da 14 bis devia ser umas nove horas da noite. Ele veio acompanhado de dois homens e subiu para ao apto. 702 de um tal de Seu Nonato. Quem me contou isso foi o porteiro da noite. Uma hora depois, mais ou menos, o sujeito do apartamento do lado, ligou para a portaria para avisar que estava havendo uma briga no vizinho. O porteiro subiu, encontrou a porta do apartamento aberta e o pai do Paulo caído no tapete”.
“Como se chama o pai do Paulo?”
“Rafael da Silva Parente”.
“E os outros?”, perguntei quando vi que ela tinha ficado quieta.
“Não tinha mais ninguém no apartamento”, ela disse meio devagar.
“Esse Nonato morava sozinho?”
”Não. Ele morava com dois filhos pequenos. O porteiro disse que ele é viúvo“.
Ela estava com uma expressão pensativa. Olhou através de mim e disse: “Tem alguma coisa de muito esquisito nisso tudo”.
“Põe esquisito nisso”, eu disse, “isso é tudo que você sabe?”
“É”.
“E o que é que você vai fazer agora?”
“Eu quero descobrir essa história”. Fez uma pausa. “Você quer me ajudar?”
“Ajudar como?”, perguntei surpreso. “Pensei que eu já estava ajudando o suficiente te economizando a grana no analista”.
“Sem brincadeira, Edu. Você está desempregado e vai acabar se matando de tanto beber e dormir. Pra você seria uma coisa útil, você ia aprender um monte de coisas sobre os bastidores do poder. Além disso, ia dar uma força pra mim”, ela falou isso com a cara mais meiga do mundo.
“Se eu me matar de beber, pelo menos vai ser suicídio”, eu falei ofendido, “e não assassinato num caso político”.
“Também não precisa exagerar”. Ela parecia invocada. “Você bem que podia largar de ser frouxo e me dar uma mão. É chato ir aos lugares sozinha. Nós dois pelo menos vamos conversando, trocando umas idéias, é gostoso!”
“Eu tenho medo é de sair perdendo na troca”.
“Tá legal, Edu. Esquece!” Agora ela parecia realmente brava.
“Tudo bem, tudo bem. Não precisa virar uma inimiga só por causa disso”. Eu já tinha resolvido ajudar. “Deixa eu por uma roupa, depois faço o que você quiser”.
Aquele sorrisinho de quem já sabia que ia conseguir o que queria me deixou meio irritado. O que a canalha queria era um chofer. Eu tinha arrumado a única coisa neste mundo que é pior que desemprego: trabalhar de graça. É sina.
Vesti uma calça jeans, uma camiseta branca e tênis. Desse jeito eu não chamaria a atenção nem que fosse o Rockfeller. Quando voltei pra sala ela estava na cozinha cantarolando baixinho. Devia ter bons motivos.
“E agora?”, eu perguntei. “O que vamos fazer?”
Ela gritou de volta da cozinha ”Vamos descobrir quem é esse tal de Nonato. Acho que se começarmos por ele vai chamar menos atenção do que começar a fuçar a vida do pai do Paulo”. Parecia fácil.
“E como vamos descobrir isso?”
Ela voltou pra sala trazendo um copo com café numa mão e um pão de forma com manteiga no outro. “Você já comeu?”, ela perguntou enquanto dava uma mordida no pão. “Se você quiser faço um pra você”.
“Já tomei um café, obrigado”, falei sentando de novo no sofá.
“Podemos descobrir onde ele trabalha e continuar a partir daí”, ela disse sentando na poltrona de volta.
“E como vamos descobrir isso?”
“Ele tem nome, não têm? A gente pergunta por aí”. Deu um gole no café.
“E como ele chama?”
“Nonato Bataglia. Filho de italiano”, ela respondeu, “e trabalha numa repartição pública”.
“Qual repartição?”
“Parece que na Secretaria da Saúde”.
“Hmm”, fiz em falta de coisa melhor a dizer.
Ela terminou o café. Levou as coisas pra cozinha, parou na porta e perguntou: “Vamos?”
“Vamos”, respondi. “Você sempre me enfia numas histórias absurdas”. Levantei, peguei as chaves e liguei a secretária eletrônica. “Tô pronto”, eu disse e fui pra porta. Ela estava parada no meio da sala olhando pra mim divertida.
“Você gosta de resmungar, né Edu?”, ela disse pegando a bolsa e vindo em direção a porta. “Acho que você não seria você sem uma reclamadinha”.
“Com os amigos que eu tenho, não admira”, falei e abri a porta pra ela passar. Ela me deu uma beliscada na barriga quando passou que me fez encolher. Enquanto ela chamava o elevador eu tranquei a porta.
Fomos até a redação enfrentando um festival de xingos e fechadas no trânsito. As pessoas estavam sempre insatisfeitas com a performance daquele fusca meia-sete no trânsito. Ele já não era grande coisa por si só, mas comigo na direção a química parecia ficar perfeita. Formávamos um teste perfeito para um estudo sobre a paciência média dos motoristas da cidade. Dirigir o carro da Karen era uma lição de humildade. Fiquei esperando no carro enquanto ela foi buscar qualquer coisa na redação. O dia estava quente e as pessoas pareciam estar andando mais devagar por causa do calor. Folheei um jornal velho que encontrei no banco de trás, fumei um cigarro, olhei o movimento na rua, li mais um pouco. Saí do carro, atravessei a rua, entrei num bar do outro lado. Pedi um Marlboro e um café. Estava terminando o café quando vi Karen saindo do prédio. Peguei e atravessei a rua em direção a ela.
“E aí”, perguntei “o que vamos fazer agora?”
“O Raul conhece um cara que trabalha no Serpro que pode nos dar alguma informação sobre esse tal de Nonato”.
“É no Ibirapuera”, ela disse enquanto entrava no carro.
Vinte emocionantes minutos de aventura no trânsito depois, chegamos ao parque. O tal sujeito amigo do Raul não estava. Voltava logo. Funcionário público nunca está, sempre já vem. Uns minutos depois, um sujeito magro com cabelos escorridos, de mais ou menos uns cinqüenta anos se aproximou de nós e perguntou: “Vocês estão me procurando?”
“O senhor é o Jurandir?”, a Karen perguntou.
“Sou eu mesmo”.
Karen explicou quem nos dera o nome dele e o que queríamos. Ele disse que iria consultar o computador e que se esperássemos um pouco poderia nos conseguir os dados que procurávamos. Ficamos de voltar logo. Uma meia hora de cerveja depois voltamos e ele nos informou que o Nonato estava lotado numa repartição da Secretaria da Saúde na Avenida Tiradentes. Era Encarregado de Setor.
Agradecemos muito e saímos. Uma vez lá fora, virei pra Karen e perguntei: “Você acha que nós vamos achar esse Nonato na repartição?”
“É lógico que não, Edu”, ela respondeu meio ríspida, “mas podemos falar com alguém que conheça ele. Alguém que possa jogar um pouco de luz na história”.
“É tudo muito estranho”, falei pensativo. “Quem eram os caras que estavam com o pai do Paulo? Onde foram parar o Nonato e as crianças? O que é que o pai do Paulo queria com ele e por que ele matou o cara? De quem era o revolver?”
“A única coisa que eu sei de todas as que você falou aí é sobre a arma”, ela me respondeu.
“O que tem ela?”
“Estava em nome de Rafael da Silva Parente”, ela falou com um ar misterioso.
“Você acha que foi suicídio?”, perguntei incrédulo.
“Edu, você já viu alguém se suicidar com dois tiros?”, ela perguntou de volta com um olhar de gozação.
“Deixa pra lá, vai”, falei, me sentindo meio idiota.
Entramos no carro e fomos pra cidade. No caminho paramos para almoçar no Galeto’s. As pessoas que estavam sentadas no balcão não poderiam imaginar que estávamos envolvidos na solução de um crime. Pareciam pessoas normais. Dessas que acordam de manhã, tem emprego, prestação e dores de cabeça. Dessas pra quem assassinato é assunto pra se ver no jornal da TV comendo pizza e bebendo Coca-Cola.
Chegamos na repartição devia ser uma e pouco da tarde. Não tinha muita gente. Passamos para o outro lado do balcão e vimos uma porta onde estava escrito. “Expedição”. Ouvimos barulho de pessoas do outro lado de uma divisória. Karen olhou pra mim e pôs o indicador nos lábios. Fiquei apreensivo. Ela abriu lentamente a porta e entrou. Achei melhor entrar atrás dela. Ela fechou a porta atrás de mim e sussurrou: “Vamos aproveitar que não tem ninguém e xeretar”.
“Xeretar o que?”, murmurei de volta meio alarmado.
“Sei lá, Edu! Xeretar é xeretar”, e foi para trás da mesa. A sala era pouco mobiliada. Tinha um arquivo de aço verde num dos cantos, um calendário de cortesia de uma papelaria numa das paredes e um crucifixo atrás da mesa onde a Karen estava muito ocupada olhando uma gaveta. Em cima da mesa tinha um mata-borrão desses que tem papel para rabiscar, um grampeador, uma dessas caixas beliche de entrada e saída cheia de papéis e um porta-retrato. Dei a volta na mesa até ficar ao lado de Karen que parecia ocupada olhando uns papeis que tinha achado na gaveta, e olhei a fotografia. Era de uma mulher e duas crianças num gramado. No canto inferior direito estava escrito: - Com amor, Lena.
Karen virou pra mim com um papel na mão e um olhar de triunfo e disse: “Demos sorte, Edu, essa é a sala dele!”
Olhei para o papel e vi o nome dele. “Isso não querer dizer nada”, falei, “ele pode ter mandado esse papel para o dono da sala, afinal ele trabalha aqui”. A Karen me mostrou um carimbo que estava na outra mão em que estava escrito de trás pra frente: - Nonato Bataglia, Expedição, Encarregado de Setor.
“Então eu já sei o nome da mulher dele”, falei e apontei o porta-retrato para ela. Ela praticamente pulou sobre ele, leu o que estava escrito e imediatamente abriu a moldura e tirou a fotografia de dentro.
“Vamos sair daqui rápido!”, ela falou e se dirigiu pra porta.
“Você vai levar a foto?!”
“Lógico! Shhh!”, ela fez um gesto com a mão para eu ficar quieto. Abriu bem devagar e fez um sinal para eu ir atrás rápido. Ninguém nos viu sair.
Ela andou depressa até o caro sem falar nada. Quando entramos no carro eu falei: “você está louca, Karen, isso é roubo!”
“Larga a mão de ser ingênuo, Edu”, e tirou a foto da bolsa. “Olha o que está escrito aqui atrás”, e me estendeu a foto.
Estava escrito: Araraquara, setembro de 97.
“Vamos para Araraquara”, ela disse num tom definitivo, “ele pode ter fugido pra lá!”
“Com esse carro não vai dar”, eu falei, “ainda mais a noite. São mais de cinco horas de viagem até lá!”
“Podemos ir de trem. O jornal paga”.
“É. A gente pega um trem ao redor da meia-noite e chega lá de manhãzinha”.
“E o que a gente faz lá?”
“Descobre onde o cara mora e vamos ver se ele está em casa. Simples”.
“Como?”, perguntei de impulso, sem pensar antes. Isso já estava se tornando um hábito.
“Pela lista telefônica, Edu! Ou então pelo cadastro da prefeitura, ou alguém da família, ou sei lá!”, ela disparou. “Você não consegue pensar sozinho, por acaso?”
“Não precisa falar assim, também. Eu estava muito bem na minha casa sozinho, sem ter que pensar em nada”, lasquei de volta.
Tá legal, desculpe”. Pelo menos agora ela soava arrependida. “Vamos pra sua casa e de lá a gente descobre o horário dos trens.
Fomos. O ar estava com cheiro de monóxido de carbono, asfalto quente e churrasquinho de gato. O trânsito já começava a engrossar. Só consegui uma vaga na Alameda Campinas, a dois quarteirões de casa. Parecia que fazia séculos que tínhamos saído de casa. O apartamento continuava em ruínas.
Mais tarde pedi uma pizza. O trem saia à meia-noite e vinte da Estação da Luz. Comemos assistindo os jornais da TV. Nenhuma notícia do assassinato. Depois ficamos olhando a foto. A mulher devia ter uns vinte e sete, vinte e oito anos. Era bonita. Os cabelos eram castanho-claros e a boca grande sorria com dentes perfeitos. O corpo era bem feito, desses que enganam a gente quando estão vestidos. Uma falsa magra. Os meninos eram obviamente gêmeos e filhos dela. O mesmo cabelo e a mesma boca. Olhavam sérios para a câmera. Deviam ter no máximo uns seis anos.
“Se ele é viúvo”, ela falou, “essa mulher morreu. E recentemente. É por isso que os filhos deviam estar com ele”.
“Isso se não estivessem com a avó ou a tia, ou qualquer coisa assim”, eu falei.
“Então, a probabilidade de eles estarem em Araraquara é grande”, ela falou. “Gostaria de saber como ela morreu”.
“Tenho um pressentimento que amanhã vamos descobrir todas essas coisas”, falei. “Quanto tempo vamos ficar lá, você têm idéia?”
“Acho que no máximo passamos o dia e voltamos a noite”.
“Devo levar alguma coisa?”
O olhar que ela me deu foi suficiente como resposta. Tomei um banho, troquei de roupa e saímos para passar na casa dela para ela fazer o mesmo. A meia-noite em ponto estávamos na estação.
Compramos passagens. Cabine com leito. Compramos bolachas e duas revistas. Embarcamos.
O trem era daqueles prateados da antiga Companhia Paulista e estava em razoável estado de conservação. O que não estava bem conservado era o povo do trem. Gente cheia de bagagem. Badulaques, crianças e vozes estridentes. Só pobre viaja de trem. A maior riqueza do Brasil são os pobres. Como tem pobre nessa terra! A cabine era boa, os lençóis eram limpos, embora parecessem estar em uso desde a inauguração da linha, e os leitos eram um em cima do outro. Não era o ideal para um casal romântico. Bem... Não éramos mesmo um casal romântico.
Tomamos um uísque no vagão restaurante e fomos para a cabine. Eu, é claro, no beliche de cima. O balanço do trem estava bom. Dormi.
O dia estava amanhecendo quando o trem entrou na estação de Araraquara. Tínhamos acordado um pouco antes com as batidas na porta do encarregado do vagão-leito. Sentia-me como se tivesse dormido dentro de uma máquina de lavar. Descemos junto com uma dezena de outras pessoas que rapidamente sumiram enquanto procurávamos uma lista telefônica. A estação era antiga, mas não muito. Era simples, de tijolos vermelhos aparentes com alguns bancos para sentar enquanto se espera. Não era grande. Não estava muito limpa também.
A Karen parecia refrescada como uma folha de alface. Olhei-me de relance num espelho e vi um sujeito com barba por fazer e um olhar fundo. Parecia pão de ontem, duro e velho. A Karen sumiu por uma porta. Fui atrás. Ela estava sentada num banco de madeira folheando uma lista telefônica atentamente.
“Achei, Edu!”, ela exclamou, “Está aqui, Bataglia, Nonato R., Rua Carlos Gomes, 285. Só pode ser ele”.
“Ótimo”, falei, “como vamos fazer para chegar lá, tomar um táxi?”
“Melhor não, Edu. Vamos andando mesmo. A cidade é pequena”.
“Andando!?!”, falei com horror, “Eu detesto fazer ginástica, meu negócio é trabalho intelectual”.
“É mesmo nisso você não é muito atlético”, ela gozou e levantou do banco. “Deixa de frescura e vamos, Edu”.
Saímos. A cidade era igual a todas as outras cidades do interior. Carros novos, caras modorrentas, todas as ruas de mão única e muitas lombadas. Não foi difícil achar a tal da Rua Carlos Gomes. Não ficava muito distante do centro, mas já era um bairro residencial. Não tinha nada de especial, somente botecos e casas. O número 285 era uma casa pequena com janela dando pra rua e uma varanda do lado direito dando vista para um quintal pequeno. As paredes estavam descascadas e a pintura anterior, de um verde claro, combinada com o bege da última pintura. No canto do telhado tinha um ninho de marimbondo. Tocamos a campainha. Não tinha cachorro. Se tivesse alguém na casa, devia estar dormindo. Tocamos de novo.Sem resposta. Se estivesse dormindo tinha o sono pesado. Acho que assassino dorme bem. A Karen empurrou o portãozinho que dava para o quintal e se esgueirou lentamente para dentro. Olhei para os lados, não vi ninguém na rua e entrei atrás tendo o cuidado de fechar o portão atrás de mim. Ela subiu os degraus que levavam até a varanda e bateu com os nós dos dedos na porta da casa. A porta estava fechada só no trinco. A Karen abriu e começou a empurrar a porta devagarzinho.
“Karen!”, eu falei alarmado. “Você está louca?”
Ela agitou a mão pra eu ficar quieto e ir atrás dela. Eu estava começando a desconfiar que esse é que era o meu problema. Eu ia demais atrás dela.
A sala estava escura e era dessas com o pé direto alto. Tinha um sofá e duas poltronas de napa marrom, uma mesinha de centro com os pés torneados de madeira e tampo de vidro, uma televisão, uma estante pequena com umas vaquinhas de cerâmica, um vaso de cristal avermelhado com umas flores de plástico e dois cinzeiros. Tudo menos livros. Ao lado do sofá um revisteiro. Na outra metade da sala tinha uma mesa de jantar com seis cadeiras e atrás das cadeiras do outro lado da mesa um par de sapatos pretos com as pontas viradas pra baixo. Havia pés dentro dos sapatos.
O homem estava de bruços, imóvel.
Olhei para a Karen e de volta para os sapatos. Ela seguiu meu olhar até os sapatos. Ela foi rapidamente até atrás da mesa e se abaixou.
“Ele está morto, Edu”, ela sussurrou, “acho que é o Nonato”,
“Ih, cacete!”, falei passando a mão no cabelo. “O que é que a gente vai fazer agora?”
Ela tirou uma carteira do bolso dele, olhou dentro e disse: “É ele mesmo. Vou dar uma olhada na casa e depois vamos sair daqui. Não põe a mão em nada”.
“E se viram à gente entrar aqui?”, eu disse. “Vão achar que nós é que matamos ele”.
Fui meio devagar pra perto do corpo pra olhar. Não dava para ver com detalhes por causa da penumbra, graças a Deus, mas parecia que tinham dado um tiro na cara dele. Tinha uma poça escura no chão em volta da cabeça. Tive que fazer força pra não vomitar.
A Karen continuava remexendo nos bolso dele como se fossem gavetas de uma mesa, sem a menor cerimônia. Comecei a ficar com medo.
“Vamos sair daqui logo antes que chegue alguém, Karen, pelo amor de Deus!”
“Calma, Edu, quero ver se descubro alguma coisa”. Ela estava com um envelope na mão. “Achei uma carta aqui”.
“Vamos logo!”, insisti, “já já vem à polícia e a gente está ferrado”.
“Que polícia o que, Edu”, ela falou ríspida. “Eles vão levar uma semana só pra começar a sentir o cheiro disso aqui”. Ela levantou e sumiu em direção aos quartos. Fui para perto da estante tentar fingir que não estava acontecendo nada. Não consegui. Ficava olhando sem parar dos sapatos do morto pras vaquinhas na estante. Sempre detestei vaquinha de cerâmica.
“O.K.”, ela disse quando voltou para a sala, “vamos sair de fininho. Faz de conta que não está acontecendo nada”.
“Claro. Afinal é só um cadáver”, falei tentando manter o astral alto, “se pegarem a gente pelo menos eu não vou ter que procurar emprego pelos próximos quinze anos”.
“Ninguém vai pegar a gente, Edu!”, ela falou pondo a mão no meu ombro. “Não seja apavorado que é pior”.
Não tinha ninguém na rua. Saímos e fomos andando até a esquina. Passou um carro na transversal. O motorista nem olhou pra gente.
“E agora?”, perguntei.
“E agora a gente volta pra São Paulo, o que mais?”
“E se não tiver trem há essa hora?”
“A gente volta de ônibus”, ela disse, “deve ter a toda hora”.
Fomos andando até a rodoviária. Parecia uma cidade fantasma, sem viva alma na rua. Ainda era muito cedo. Eu conseguia ouvir nossos passos na calçada. O corpo estendido atrás da mesa não me saía da cabeça.
“Quanto a bebida eu não sei”, falei pra Karen, “mas meu problema de dormir demais acho que está resolvido. Nunca mais vou conseguir fechar o olho sem ver aquele cara morto no meio da sala”.
“Não seja mórbido, Edu”, ela disse meiga, olhando pra mim, “logo mais a gente esquece”.
“Claro, claro. Um morto a mais, um morto a menos, que diferença faz”. Me sentia como se tivesse tomado uma pedra de café da manhã.
A rodoviária parecia um aeroporto. Devia ser o orgulho da cidade. Compramos as passagens e em quinze minutos estávamos instalados no ônibus. Assim que o ônibus entrou na estrada me deu uma vontade enorme de ir ao banheiro.
“Você trouxe a carta!”, falei surpreso quando a vi tirando o envelope da bolsa.
“Claro”, ela disse, “você acha que eu ia deixar lá?”
Ela começou a ler a carta em silêncio. O sol estava entrando pela janela. O ônibus estava meio vazio e sujo. No outro lado do ônibus, uma fileira pra frente da nossa, tinha uma menina vestida no consagrado estilo mamãe-eu-quero-ser-puta. Sentada do lado dela uma velha gorda que devia ser a própria. A própria mãe, digo. Mais na frente eu só conseguia ver um braço e uma cabeça de dois homens que conversavam alto o suficiente para serem ouvidos, mas não para serem entendidos. O motorista era um crioulo brilhante com óculos de piloto de helicóptero. Devia ser por influência da rodoviária, pelo menos tinha cara de competente. Acendi um cigarro e fechei os olhos. A imagem do sujeito emborcado no chão me veio imediatamente. Abri os olhos. A Karen estava segurando a carta com a mão apoiada na perna. Ela estava olhando pela janela.
“O que é que têm na carta?”, perguntei.
“Tem um monte de coisas”, ela respondeu. “A Lena se separou do Nonato e ele ficou com as crianças”.
“De quem é a carta?”
“É dela, Edu!”, ela falou impaciente. “Eu não estou te contando?”
Fingi que não era comigo e tentei outra: “De quando é a carta?”
“É de março. Deixa eu falar. Na carta ela fala que sente saudades das crianças e que não é justo que ele não deixe as crianças verem ela e que já tratou advogado pra conseguir isso na justiça”.
“Mas ela não morreu?”, interrompi.
“Lógico que ela não morreu, Edu?”, ela disse com a voz de saco. “Você acha que ele psicografou a carta? Para de fazer perguntas idiotas!”
“Lá vem você com patada de novo”, falei bravo.
“Desculpe, Edu, é que estou tentando achar um novo nexo em tudo isso”.
“Quem disse que ele era viúvo?”
“O porteiro do prédio dele”.
“O Nonato podia estar escondendo alguma coisa”, falei.
“É mesmo. Ele pode ter inventado esse negócio de viúvo.”
“Só pode ser. O pai do Paulo devia ser amante dela. Ele foi atrás do Nonato para matar ele e acabou sendo morto”, falei tentando entender esse embrulho de quem matou quem. “Mas por que o pai do Paulo faria isso?”
“Sei lá. Precisamos descobrir se foi isso, e se foi, por que”, ela disse depois de pensar um pouco.
“Nesse caso quem matou o Nonato? O Paulo?”
“Não sei. Se o Paulo odiava o pai você acha que ele iria se sujar vingando a morte dele?”, ela ponderou.
“Tudo pode ser, Karen, as pessoas são loucas. Em todo caso agora não tem jeito, vamos ter que xeretar a vida do pai do Paulo”, eu disse. Ficamos os dois quietos pensando.
O resto da viagem passou mais ou menos rápido. Conversamos sobre restaurantes, filmes, pessoas; falamos sobre emprego, desemprego, situação política, corrupção, moda; lembramos de coisas, épocas, pessoas e situações; discutimos religião, filosofia, comportamento e futebol. Só não falamos mais sobre os crimes até chegar em São Paulo.
Chegamos em São Paulo já depois do almoço. O dia estava nublado e bem abafado. Havia uma esperança de chuva por conta de umas nuvens mais escuras perto da linha do horizonte. Sentia-me cansado e tenso. Pegamos o metrô da rodoviária e descemos na Praça da República. Fomos andando até em casa.
Entramos no prédio na horinha que a chuva começou. Abri a porta do apartamento e fui direto para o quarto tirar a roupa. A Karen desabou no sofá da sala.
“Você não quer fazer um café enquanto eu tomo uma chuveirada?”, gritei do quarto.
“Não”, ela gritou de volta. “Você faz quando eu for tomar banho”.
Entrei no banheiro me perguntando onde estariam as mulheres de antigamente. Uma dessas arrumaria uma roupa limpa pra eu vestir depois do banho e estaria me esperando na porta do banheiro com uma xícara de café quentinho. Lembrei do Nonato. Resolvi tomar um uísque ao invés de café quando saísse do banho. Seria melhor pra acalmar.
Saí do chuveiro e pus meu roupão. Ele ficava ótimo em mim. Sempre achei chique tomar uísque de roupão enquanto ouvia uma garota no banheiro. No caso, era um problema usando o meu chuveiro, mas consegui me iludir um pouquinho.
“Onde está o café?”, ela perguntou assim que saiu.
Ela estava enrolada na toalha. Quando a vi desse jeito achei que era mais do que um problema. Eram vários.
“Não fiz”, respondi. “Resolvi tomar um uísque ao invés”.
“Faz um pra mim enquanto eu me visto então”, ela disse e foi para o quarto.
Fiz o uísque dela e coloquei na mesinha. Sentei no sofá e fiquei pensando no problema dos crimes. Ela voltou pra sala usando uma camisa minha, pegou o uísque da mesinha e sentou na poltrona de frente pra mim.
“Nós vamos dar uma campana na casa do pai do Paulo”, ela falou e deu um gole. “Você tem alguma coisa pra beliscar em casa?”
“Tem amendoim no armário em cima da geladeira”, falei apontando pra porta da cozinha. “Como assim campana?”
Ela se levantou e foi até a cozinha. Quando voltou disse: “Vamos ficar de plantão na porta da casa dele pra ver o que acontece”.
“E se não acontecer nada?”
“Alguma coisa sempre acontece. A gente fala com uma empregada ou com um chofer. Algum tipo de informação a gente consegue”, ela falou colocando um amendoim atrás do outro na boca, “Você quer um pouco?”
Peguei um pouco de amendoim, pus uns dois na boa e fiquei pensando.
“Nós não deveríamos avisar a polícia da morte do Nonato?” A pergunta deveria ter me ocorrido antes.
“Nem pensar, Edu”, ela disse arregalando os olhos, “nós não temos nada com isso e o Raul falou pra eu não me meter”.
“Mas, Karen”, falei alarmado, “isso é crime!”
“Pode ser, mas pra todos os efeitos nós não estivemos lá!” Ela soava definitiva. Achei melhor mudar de assunto.
“E o que é que vamos fazer hoje à noite?”, perguntei.
“Você, eu não sei”, ela respondeu. “Eu vou pra casa pra começar a redigir a matéria. Você podia passar lá pra me pegar de manhã”.
“Eu te pegar? Mas é você que tem carro! Aliás, a gente nem sabe onde mora o pai do Paulo”, falei meio indignado.
“Eu descubro, Edu, não se preocupe”, ela sorriu pra mim e terminou o uísque de um gole só. “Deve ter na lista. Eu não sei o que é que você tem contra lista telefônica”.
Resolvi deixar passar esta. “Que horas você me pega amanhã?”
“Nove e meia está bom pra você?”
“Tudo bem”, respondi já pensando no que fazer sozinho à noite.
Ela levantou e foi até a porta, virou pra mim e disse: “Nove e meia, Edu, vê se não esquece. Amanhã te devolvo a camisa”.
Depois que ela saiu fui para o quarto e me vesti. Coloquei uma camisa ocre e uma calça da mesma cor, mas um tom mais escuro e um cardigan sem manga com losangos pretos e vermelhos, uma borrifada de perfume e resolvi dar um pulinho até o Supremo pra ver se encontrava alguma coisinha diferente na happy-hour. Nunca se sabe. Embora a idéia de uma hora inteira happy tenha me parecido absurda na circunstância.
Fiquei mais ou menos uma hora apoiado no balcão tomando um uísque. Na verdade dois. Talvez tenham sido três. De fato, não foi uma hora muito happy, a única coisinha diferente que encontrei foi o preço do uísque. Achei melhor ir dormir cedo.
A primeira coisa que ouvi de manhã foi Dona Mafalda na cozinha. Parecia tudo normal, o barulho das panelas, ela andando pra lá e pra cá, o som dos carros na rua, a luz entrando pela veneziana. Fechei os olhos para cochilar mais um pouco. Veio-me na cabeça a imagem do corpo do Nonato. Sentei na cama. Comecei a me lembrar do sonho: o Paulo Parente com a cara ensangüentada correndo atrás de mim no trem, eu tentando achar a Karen que tinha ido ao banheiro trocar a minha camisa. O Paulo dava gargalhadas e eu gritava que podia explicar tudo. Tinha mais alguma coisa, mas não conseguia lembrar o que era. Tomei um susto quando a campainha tocou.
“Deixa que eu atendo!”, gritei para a Dona Mafalda, fui até a porta e espiei pelo olho mágico. Não era a polícia.
“Abre logo, Edu!” A cara dela ficava terrível vista por um olho de peixe. Abri. Ela olhou pra mim e disse: “Você não está pronto?”
“Claro! É a última moda para o verão, cueca e camiseta, você não sabia?” Fiz uma cara admirada.
“Vai se vestir, Edu, já é tarde”.
“Karen”, falei sério, “eu estou com medo. Tive um pesadelo terrível. Sonhei que o Paulo Parente queria me matar”.
“Larga de ser bobo, Edú. O Paulo tem coisa melhor pra fazer do que matar publicitário desempregado”.
“E se isso der rolo?”
“Isso já deu rolo! A minha casa estava revirada quando cheguei ontem. Parecia que tinha passado um furacão lá. A minha mesa com tudo fora do lugar, meus papéis espalhados por toda parte. Mexeram em tudo”.
“Quem você acha que foi?”, falei alarmado.
“Só pode ter sido gente do Paulo. Eles deviam estar procurando alguma coisa. Até nas minhas roupas eles fuçaram!”
“E o que você fez?” As coisas não estavam nada boas.
“Liguei para o Raul no ato. Fiquei com muito medo. Não sabia se chamava a polícia, se fugia ou o quê”.
“E o Raul, o que é que achou?”
“Ele falou pra eu sair de casa imediatamente e ir pra um hotel”.
“Por que você não veio pra cá?”, perguntei.
“Eu achei que não tinha que te envolver mais nisso. Pode ser perigoso de repente”, ela falou.
“Quer dizer que roubar repartição pública e ocultar mortes da polícia, tudo bem. Perigoso é vir dormir comigo, né?”, falei sarcástico.
“Pó, Edu! Não é isso!”, ela disse indignada. “Ou então é isso mesmo. Já estou com rolo demais na minha vida. Esses caras podem estar a fim de me matar também, você não entende isso?”
“Deixa disso Karen. Ninguém vai matar você”. Tentei acalmá-la um pouco. Estranho isso. Cinco minutos atrás era eu que estava morrendo de medo. Agora, não só a situação tinha ficado mais séria, como eu estava dando uma de herói. E de cueca e camiseta no meio da sala.
Fui me vestir.
Depois de um pingado e um pão com manteiga na padaria pra não perder tempo, a Karen pôs a chave do carro na minha não e disse. “Você dirige”, num tom que não admitia contestações. Eu dirijo. Sou sempre eu que dirijo. Esse negócio feminista já está indo longe demais, pensei, logo mais os homens vão ficar em casa lavando roupa e as mulheres vão para o bar beber à noite. Achei melhor não tocar no assunto. Já tinha crime demais nessa história.
A casa do pai do Paulo ficava no Ibirapuera, numa rua arborizada e tranqüila. O dia estava quente e o sol estava querendo sair. Um bom dia pra ir nadar. A casa ficava no meio do quarteirão, era térrea e tinha uma fachada de granito. Ela ficava um pouco recuada, tinha um gramado na frente e um muro baixinho com uma grade de ferro. No canto, encostada na rua, havia uma guarita de fibra bege. Não conseguimos ver se tinha alguém dentro da guarita por causa dos reflexos de luz no vidro. Encostei o carro uns cinqüenta metros depois de passar na frente da casa. Fiquei olhando pelo retrovisor.
“Parece tudo tranqüilo”, falei, “você tem certeza que é aqui?”
“Lógico que tenho. Vamos ficar aqui e ver o que acontece”.
Passou um cachorro marrom e branco, com coleira de couro combinando, deu uma mijadinha no pneu da frente e seguiu. Mais pra frente na transversal, uma empregada empurrando um carrinho de bebê azul marinho, atravessou a rua. A Karen acendeu um cigarro. Eu acendi um cigarro. Acomodei-me melhor no banco, abri a janela e dei uma olhada pelo retrovisor e depois pelo espelho lateral. Não havia movimento nenhum, a casa parecia em animação suspensa, como o resto da rua. A Karen começou a ler o jornal e de vez em quando olhava pelo vidro de trás do carro. Ela jogou a bituca pela janela. Eu joguei a bituca pela janela.
“E se não acontecer nada até o fim dos tempos?”, perguntei. “E se não tiver ninguém na casa e foi todo mundo viajar?”
“Daí a gente vê o que faz”, ela levantou os olhos do jornal, “mas por enquanto a gente espera. Nesse tipo de coisa não adianta ter pressa, Edu”.
Olhei um bando de passarinhos muito ocupados não sei com o que, na copa de uma árvore do outro lado da rua. Na verdade eles faziam barulho. Prestando atenção nessas ruas você percebe que elas estão infestadas de passarinhos. Eu só não gosto de passarinho as cinco horas da manhã quando estou levando o que resta de mim para dormir depois de uma noite daquelas. Nessa hora tenho vontade de matar os malditos passarinhos. Mas assim de manhã, descansado, até que eu vou com a cara deles.
“Vai sair um carro”, a Karen falou me cutucando.
Olhei pelo retrovisor e vi um carro preto saindo de ré da garagem. Ele fez uma curva graciosa para trás e veio na direção em que estávamos. Quando passou por nós a Karen disse: “É ela! Vai atrás!”
Liguei o carro, botei primeira e saí atrás com um solavanco.
“Ela quem?”
“A Lena!”
“Que Lena?”
“A mulher do Nonato, Edu!”, ela quase gritou comigo.
“Mas a mulher do Nonato não morreu?”, perguntei idiotamente.
“Então dever ser o fantasma dela”, Karen falou já meio irritada. “Vê se não perde de vista, acabou de entrar a direita ali”.
Eu merecia a resposta. Pelo vidro de trás dava pra ver uma cabeça no banco traseiro do lado direito e do lado esquerdo mais na frente uma cabeça que devia ser do chofer. O diabo do chofer dirigia rápido. Ele pegou a direita e foi descendo em direção a marginal. Por sorte ele pegou a marginal, senão fatalmente perderíamos o carro preto de vista. Ficou pouco, logo reduziu, mudou primeiro para a pista do meio e depois para a da direita. Quando entrou em uma rua à direita a Karen falou: “Acho que ela está indo para o Clube Pinheiros”. De fato. O carro entrou na garagem do clube. Entramos atrás.
“Você é sócia?”, perguntei depois que pegamos o ticket de estacionamento.
“Não”, ela respondeu, “sou jornalista. Deixa que eu dou um jeito”.
Paramos o carro três vagas além do dela. Ela saiu do carro e se dirigiu para a entrada do clube. O chofer foi atrás. Era a Lena mesmo. Achei-a melhor ao vivo do que na fotografia. A Karen esperou ela se afastar um pouco, virou pra mim e disse: “Me espera aqui que eu vou quebrar o galho pra gente entrar”.
“O.K.”, respondi descendo o corpo um pouco no banco do carro. “Vai lá, eu te espero”.
A Karen saiu, se embrenhou no meio dos carros e sumiu. Fumei um cigarro olhando a garagem. Era baixa, cheia de carros e tinha o cheiro de abafado das garagens subterrâneas. Um dos lados da garagem abria para o clube ao nível do chão e era separado por grades. Saí do carro e fui dar uma espiada. Era possível ver as pernas das pessoas do joelho pra baixo. Elas passavam num caminho que acompanhava a garagem. Do outro lado do caminho, um jardim de plantas baixas e atrás delas árvores. Acompanhei um par de pernas que prometiam até perder de vista. Isso levou uns vinte segundos. Fiquei esperando outro par.
“Tudo bem. Podemos entrar”, a voz da Karen me deu um sobressalto. Não tinha percebido ela se aproximar.
“Que história você contou?”, perguntei.
“Falei que estava fazendo uma matéria pro jornal. O porteiro teve que consultar alguém na secretaria, mas tudo bem”.
Entramos. Começamos a andar pelo clube procurando a Lena. Achei que reconheci o par de pernas numa loira que estava jogando tênis. A Lena estava sozinha tomando um suco de laranja numa mesinha de um bar ao lado de uma espécie de solário. Umas moças que não eram de se jogar fora estavam tomando sol espalhadas por perto.
“E agora?”, perguntei discretamente para a Karen e apontei com os olhos para o chofer que estava encostado numa mureta do outro lado.
“Agora vamos pegar uma mesa”, ela respondeu se dirigindo para o bar. “Nada como ficar observando um pouco”.
Sentamos e pedimos uma cerveja. Olhei para o chofer de novo. Ele parecia uma Coca de dois litros. Era enorme, estava de calça branca, camisa verde e tinha o cabelo cortado em ângulos retos. Como era possível eu não ter notado que ele era daquele tamanho não posso imaginar. Ele estava mais para guarda-costas do que para chofer.
“Se você está pensando em abordar ela, esquece”, falei para a Karen. “Aquele mastodonte tem cara de poucos amigos”.
“Nessas alturas do campeonato, Edu”, Karen falou, olhando para o chofer meio de esguelha, “é o nosso único jeito. Ela é a única pessoa nessa história toda que pode nos contar o que aconteceu”.
“Sem dúvida. Mas o segurança deve estar aí justamente para evitar isso”, falei e dei um gole na cerveja.
“Pode ser. Mas ela deve ir ao banheiro sozinha, você não acha?”
“É, acho que sim. Tomara que ela queira ir ao banheiro”.
“Mulher sempre vai ao banheiro, você vai ver”.
Dito e feito. Uns cinco minutos depois a Lena se levantou e foi em direção ao banheiro do bar. Karen esperou quase dez segundos e foi atrás. O Coca dois litros acompanhou a patroa com os olhos, mas não se mexeu do lugar. Eu fiquei apreciando a paisagem. De onde estava era possível ver as duas piscinas que ficavam ao nível do chão e a forma de taça da outra que ficava mais para trás, num plano mais elevado do que o meu. Olhando para a esquerda dava pra ver uma pista de atletismo gramada no centro e com arquibancadas em uma das retas. Muitas árvores por toda a parte e, ao fundo, bem ao fundo, prédios altos. Olhando nessa direção não parecia estar tão no meio do movimento da cidade. A paisagem no solário também era bonita. As moças deitadas tomando sol estavam lindas. Gosto de ver moças se bronzeando. Elas se esticam e viram e parecem não notar que estão sendo observadas. Nunca olham pra gente.
Demorou, mas a Karen apareceu voltando de dentro do bar e sentou de novo na mesa.
“E aí?”, perguntei curioso.
“E aí que falei com ela. Disse que era do jornal, que estava levantando a história e garanti que se ela contasse tudo pra mim eu não ia dizer quem me contou”. Ela falou isso baixo e pegou o copo de cerveja.
“E ela?”
“No começo ficou desconfiada, mas aos poucos relaxou. Disse que estava sendo vigiada o tempo todo e que não tinha como falar comigo sem que a fera aí avisasse o Paulo Parente”.
“Quer dizer que o Paulo está metido nisso”, falei tirando a conclusão brilhante. “Ela já sabe do Nonato?”
‘É claro que está, Edu”, ela falou já com a voz meio impaciente, “mas ela não sabia do Nonato. Quanto eu contei ela ficou chocada. Começou a chorar baixinho e disse que era uma desgraçada. Que era responsável pela morte do Rafael e agora pela morte dele também. Que sua vida tinha terminado. Que queria morrer também. Procurei acalma-la. Ela continuou chorando e soluçando e dizendo que não tinha ninguém no mundo. Falei que os filhos precisavam dela. Não fui muito esperta. Ela começou a chorar mais forte ainda. Disse que não ia conseguir explicar isso para os filhos nunca. Que tinha muito medo do Paulo. Que ele a tinha colocado praticamente em prisão domiciliar e que estava revoltada com o negão aí vigiando ela o tempo todo.
“Prisão domiciliar?”, a pergunta era quase retórica.
“Claro Edu. Você acha que ele vai arriscar que uma história dessas venha a público no meio de uma campanha eleitoral?”, ela falou meio irritada.
“Eu falei que a única garantia que ela tinha era contar toda a história para alguém. Aos poucos parou de chorar e disse que ia pensar, que falaria comigo depois. Quando eu ia sair do banheiro ela me pediu pra ficar na mesa mais um pouco. Em todo caso dei meu telefone pra ela”.
A Lena demorou para voltar para a mesa. Ela estava com cara de quem tinha estado chorando, nariz vermelho. Ela fez um sinal para o chofer. Ele se aproximou da mesa dela arrastando os passos numa ginga que devia fazer um sucesso incrível depois da meia-noite no Bexiga. Ali, à luz do sol, ficava um pouco fora de lugar. Ela disse qualquer coisa pra ele e ele se afastou em direção a garagem. A ginga do negrão era sensacional. Ela devia ter mandado ele buscar qualquer coisa no carro.
Assim que ele sumiu, ela levantou da mesa e veio na nossa direção. Quando chegou perto falou pra Karen:
“Vamos para o bar da sede. Ele não vai nos achar lá”.
Fomos atrás dela sem dar muita bandeira. O outro bar era bem mais fino. Mesas redondas com poltronas de couro e aquele ambiente de sons abafados que lembram biblioteca de mansão. Ela escolheu uma mesa no fundo, meio atrás de uma coluna e sentou.
Ela só levantou os olhos quando chegamos bem perto.
“Que garantia eu tenho que você não vai publicar nada do que eu disser?”, ela perguntou.
“Garantia nenhuma”, Karen respondeu. “Só posso te prometer que seu nome não vai aparecer”.
Ela ficou pensativa. Um garçom se aproximou, pedi uma cerveja.
“Está bem!”, ela disse finalmente. “Vou confiar em você. Preciso mesmo falar com alguém”. Ela olhou pra mim. “E ele?”
“É um amigo meu. Não têm problema nenhum, pode confiar!” A segurança da Karen era contagiante. Se ela falasse nesse tom comigo me convenceria de qualquer coisa. Investigar um assassinato, por exemplo.
Ela deu um suspiro e começou:
“Eu sou de Araraquara e fiz o que toda menina do interior da minha idade fazia. Quanto tinha dezessete anos conheci o Nonato e comecei a namorar com ele. Casei com dezenove. O Nonato trabalhava no Banco do Estado e queríamos casar e ter filhos. Eu queria ser igual a minha mãe, mas o Nonato tinha outras idéias. Era mais ambicioso. Ele queria vir para a Capital e achava que íamos ficar ricos. Mas durante o primeiro ano ficamos lá mesmo. Tentamos ter filhos desde a primeira noite, mas eu não engravidei.
“Mas você tem filhos!”, Karen falou.
“Tenho, mas isso foi depois. Tanto o Nonato fez que conseguiu ser transferido para São Paulo e nós viemos. Fomos morar da Saúde. Ele trabalhava numa agência lá perto. Umas duas semanas depois que chegamos, nós conhecemos o Rafael numa fila de cinema. A gente estava indo ao cinema pela primeira vez em São Paulo e estávamos contentes. Ele pediu para o Nonato comprar um ingresso para ele. O Nonato não gostou muito, mas comprou. Ele agradeceu muito e começou a puxar conversa enquanto entrávamos. Quando descobriu que o Nonato trabalhava no Banco ficou muito animado e disse que tinha uns contatos que poderiam melhorar a condição dele. Assistimos ao filme juntos e ele nos convidou para jantar depois. Eu notei que ele me olhava muito, mas na hora achei que era o jeito dele.
“Ele te deu uma cantada?” Karen perguntou a queima-roupa.
“Não, de jeito nenhum. Ele era muito respeitoso. Só achei que ele olhava pra mim de um jeito engraçado. Bom, depois que o conhecemos, nossa vida mudou. Ele arrumou um emprego para o Nonato na Secretaria da Saúde e nos achou uma casa melhor para morar. Ele não saía lá de casa. Eu não sei muito bem como aconteceu, nem interessa mais agora, mas acabei me apaixonando por ele. Ele vinha durante o dia quando o Nonato estava na repartição”, ela falava olhando pra mesa, “e eu me dava muito bem com ele. Ele era carinhoso e me fazia feliz de um jeito diferente do Nonato. Além do mais, tinha medo de dizer não pra ele e prejudicar a carreira do meu marido”.
“Ele te chantageava?” A Karen perguntou com a maior naturalidade. Comecei a achar que ela estava exagerando, desse jeito a mulher não ia acabar a história. Mas ela nem ligou.
“Não. Isso era medo meu. Eu gostava dele. Uns meses depois eu fiquei grávida. Fiquei com muito medo. O Nonato não desconfiava de nada e estava confiante na vida. Fazia planos e mais planos, falava do trabalho o tempo inteiro. Quando contei para o Rafael, ele disse para eu ter o filho que não ia haver problema. O Nonato ficou muito feliz com a notícia. Tive gêmeos. Assim que olhei pra eles tive certeza que eram de Rafael. Não me pergunte o porquê”.
“Por quê?” A Karen ainda ia ganhar o Troféu Imprensa.
“Não sei. Um sentimento, um jeito, sei lá”. Ela respondeu sem perceber o absurdo. A Karen devia ter aprendido esse truque em algum lugar.
“Mas a vida continuou normal”, ela acrescentou.
O garçom se aproximou com a cerveja. Colocou os copos pra mim, pra Karen e pra ela e depois se afastou. Lena esperou ele se afastar e continuou.
“Foram anos muito bons. A nossa rotina mudou um pouco por causa das crianças, mas passamos a nos encontrar à tarde num apartamento que o Rafael tinha no centro. À medida que os meninos foram crescendo o Rafael foi se apegando mais a mim. Falava que eu tinha que largar o Nonato e ir morar com ele. Ele era viúvo e morava sozinho. Eu resisti o quanto pude, mas esse ano eu resolvi. Contei tudo para o Nonato e saí de casa para morar com o Rafael”.
“Como o Nonato reagiu quando soube?”, Karen perguntou.
“Ele ficou transtornado. Me xingou muito e até ameaçou me bater. Mas ele é um frouxo. Teve medo pela carreira. Concordou com a minha saída, mas não me deixou levar os meninos de jeito nenhum”.
“O Rafael era apegado às crianças também?” Karen perguntou.
“Muito. Ele era padrinho delas. Isso foi um veneno na vida do Rafael desde o primeiro minuto que cheguei na casa dele. Ele queria as crianças de qualquer jeito. Eu tentei convencer o Nonato a nos deixar ver os meninos de vez em quando, mas ele não deixou. O Rafael me deu um prazo de dois meses. Depois ele ia tomar as providencias dele. Nunca me falou o que. Na noite em que morreu ele tinha ido buscar as crianças. Agora está morto. Acabou tudo. Acabou minha vida”. Ela estava com a cabeça baixa. Parecia realmente arrasada.
“Onde estão as crianças?” Karen no ataque.
“Estão comigo. Naquela noite os seguranças as trouxeram pra mim”. O rosto dela se alegrou um pouco, mas logo ficou triste de novo.
“Quem você acha que matou o Nonato?” A Karen perguntou. Comecei a ficar espantado com a pergunta quando um olhar da Karen me pregou na cadeira. Achei prudente continuar quieto.
“Não sei. Eu acho que isso é coisa do Paulo. Eu sou vigiada o tempo todo e só saio acompanhada de segurança. Ele não quer que eu fale com ninguém. Ele toma conta de tudo. Nem o telefone posso usar”
Ela parecia indignada.
“Eu tenho muito medo por mim e por meus filhos. É por isso que estou falando com você. Alguém tem de saber a história. Ele não quer escândalo. Ele e o pai se odiavam”.
A Karen fez cara de “não te falei?”, para mim por um centésimo de segundo e continuou a prestar atenção.
“E agora”, Karen perguntou, “o que você vai fazer?”
“Não sei”, ela respondeu com um ar triste e uma voz pequenininha. “Eu não sei mais nada. A minha vida acabou. Tenho que criar os meninos. Só isso”.
Ficamos quietos. O silêncio na mesa ficou um pouco opressivo. Ela levantou os olhos e olhou pela janela. Olhamos também. O crioulo estava vindo em direção ao bar. Nos despedimos dela e nos levantamos. Saímos pela porta de trás do bar e fomos embora. Enquanto andávamos até a garagem perguntei pra Karen:
“Por que você contou do Nonato pra ela?”
“Primeiro porque achei que era a única maneira de convencer ela a falar, depois porque não ia mudar nada. A vida dela acabou mais do que ela pensa”.
Não falamos do assunto no caminho de volta. Achei que ela tava pensando naquilo tudo e não quis interromper. Além disso, eu também estava me sentindo meio murcho. Ela me deixou em casa e foi até o jornal. Eu estava com um gosto ruim na boca e um sentimento de vida besta.
Entrei no apartamento, sentei no sofá e fiquei pensando. Nos gêmeos, na Lena, no Nonato. Pensei no Rafael Parente. Quanto desperdício de vida e de tempo. O que seria de todos eles? O que seria dos meninos, meu Deus. Com uma história de vida destas, ainda por cima gêmeos, o que não ia facilitar nada, qual seria o futuro deles? Será que algum dia alguém contaria a eles sua verdadeira história? Será que lembrariam de alguma coisa? Como você explica uma história destas? E a Lena então... Como será que faria para viver, será que receberia alguma coisa? Não se podia esquecer que o Paulo Parente poderia conseguir abafar esta história. Certamente tinha poder para dar um jeito de tirar tudo da mão dela e das crianças. Que mundo podre esse que corre por baixo do mundo visível. A gente nem imagina os absurdos que acontecem o tempo todo. A história verdadeira por trás do que lemos no jornal. Fora o que nem sai nos jornais. É tudo poder, dinheiro, corrupção, podridão. Senti asco de tudo aquilo.
O Paulo Parente foi eleito prefeito afinal. É o Brasil, acho. Será que algum dia vai mudar? Será que não é bem o Brasil, mas é o mundo? Ou será que são as pessoas que são assim? Não sei. Pode ser.
O que eu sei é que não parece haver fim para a miséria humana. Senti-me sem o menor humor, sem vontade de fazer graça com nada.
A Karen foi tirada do caso naquele mesmo dia. O Raul se comportou de modo estranho. Elogiou muito a matéria da Karen, mas disse que ia esperar mais um pouco para publicar. Precisava de mais elementos. Ele pôs um repórter de polícia para acompanhar o desenrolar do caso dizendo que o sujeito tinha mais experiência e que era preciso pensar duas vezes antes de publicar um escândalo desse porte. Podia prejudicar o jornal. Enfim, é claro que a reportagem não foi publicada. Indignada, a Karen brigou com o Raul e pediu demissão do jornal. Umas semanas depois, ela me disse que um sujeito tinha confessado ter matado o Nonato em Araraquara. Ele já era procurado por outras mortes na região. A morte do pai do Paulo só saiu como anúncio na seção de falecimentos do jornal.
Continuei desempregado por mais um tempo. Mas, em comparação com o que a vida tinha aprontado com a Lena, ou da traição que tinha trazido os gêmeos ao mundo, que importância tinha isso? Acabaria dando um jeito.
A Karen mais uma vez, tinha me enfiado em uma história cavernosa. Por outro lado, se eu a conhecia bem, essa não tinha sido nada, a próxima ia ser bem pior.

Isca de Polícia


Abri os olhos. Algumas cenas do sonho me vieram a mente. O mesmo sonho de novo. Fazia meses. Sempre uma situação na qual tinha grande dificuldade de enxergar. Não que eu seja um lince quando estou acordado, mas no sonho estava praticamente cego. Não, era mais como se tivesse a vista tão embaçada que me impedisse de focalizar o que estava na minha frente. Percebia vultos que eram familiares e que sempre queriam que fizesse alguma coisa, como se não percebessem a minha aflição. Aflito. Acordei assim. Como contraste o quarto estava com aquela luminosidade de um dia de sol. Alguma qualidade no ambiente ou no som do mundo que me dá vontade de ser qualquer outra pessoa menos eu mesmo de ressaca. Associo essas manhãs a certos domingos em que estivesse tranqüilo, sem sobriedade nem ansiedade. Como se o presente fosse inabalável por essa semelhança a domingos do passado. Como se tudo na vida fosse mágico. Por outro lado, eu não acredito em mágica.
Mais um dia. Passei a prestar atenção nos ruídos da casa. Tentei discernir os barulhos da cozinha. Dona Mafalda preparando um café. Dona Mafalda era uma negra velha que estava comigo há muitos anos. Ela tinha aquele jeito humilde dos pobres de antigamente. Fazia tudo muito cuidadosamente, mas sempre da maneira mais absurda possível. Ouviu calada quando a principio tentei estabelecer uma rotina que servisse aos meus interesses. Mas ela tinha outra opinião. Agia como se precisasse ensinar aos mais jovens quais eram os reais interesses de uma casa, a rotina mais conveniente. De modo que ela tinha lá suas manias, mas o lugar funcionava. É verdade que a maioria das coisas na cozinha eram itinerantes e na versão dela os plugs moravam fora das tomadas. Ela também mantinha um outro emprego de faxineira num prédio do centro ao qual nunca quis renunciar, apesar dos insistentes pedidos, freqüentes ameaças e das ofertas financeiras mais tentadoras. E, além disso, o café da manhã dela demorava pra sair.
Ouvi um barulho monótono meio distante na rua. Parecia de uma orquestra de britadeiras. Deviam estar assaltando um banco. Não havia muito movimento, devia ser umas quinze pras sete. De que dia mesmo? Com certeza uma quinta-feira. Sempre é quinta-feira. Vagas lembranças do porre da noite anterior. O problema é que os porres estão ficando tão iguais que as lembranças vagas da noite anterior se parecem com as vagas lembranças de outras noites anteriores. Joguei uma perna pra fora da cama, estava frio, botei ela pra dentro de novo. O sonho, o porre, tudo mais ou menos a mesma coisa. A solução pra tudo é um banho. Quando você não sabe quem você é direito a essa hora da manhã, tome um banho. É a única solução.
Senti-me um pouco melhor, só notava agora umas duas ou três britadeiras em uníssono. Tomei um café que desceu como uma luva, isto é, com gosto de luva. Saí pra rua. Isto é praticamente automático comigo quando estou nesse estado.
Sou uma dessas pessoas.
O diálogo com a empregada tinha sido o de sempre. Olhava-me com aquele olhar de decadência moral dos costumes e um rapaz tão moço e onde isto tudo vai parar. De qualquer modo passava minhas camisas sem abrir um buraco nelas como o chinês da lavanderia. Pra mim já era alguma coisa. Precisava dar uma solução ao problema de ter sonhos recorrentes. Maldito sonho. O mundo das oito e meia da manhã deveria ser proibido. Mais uma vez o ritual de tomar cerveja ignorando os olhares discretos como holofotes que as pessoas que acordam a essa hora dirigem a tipos como eu.
O dia na agência estava ótimo. Uma espécie de refilmagem de Drácula, só que feita no México. Tinha uma campanha para criar. O cliente tinha uma imaginação de Spielberg e um orçamento brasileiro. Afinal tinha que justificar os trocados que me davam por salário. Fiz uma hora de concentração olhando para o jornal no banheiro e dormi de olhos abertos durante dois brainstorms. Um dia produtivo. Tomei dois uísques no Sujinho’s da esquina e voltei para o apartamento. Oito e meia de novo. Só que da noite, o que era melhor. Ouvi durante dez minutos o barulho de ocupado que vinha da secretária eletrônica numa espécie de homenagem que eu presto diariamente às pessoas que não me deixam recado. Mais um uísque. Tentei três mulheres diferentes. Duas não atenderam e a terceira... Bom, deixa pra lá, eu queria mesmo ficar sozinho. Foi o que fiz.
Vi umas três horas de TV esperando por um filme, mas as coisas quebram ou dão errado só quando não podem. A conspiração das coisas. Queria ver o filme, e agora, em cima da hora, a porcaria da TV, puff, resolveu quebrar. Sem mais aquela. Apagou e pronto. Fiquei uns minutos olhando a tela escura. Depois levantei, dei umas porradas no lado da TV. Nada.
Talvez se fosse até o Álvaro, lá desse pra ver. Mas era meio tarde para incomodar, não tanto por ele, mas pela mulher dele e os filhos, que já deviam estar dormindo. Ele era um dos que não escapou. Um amigo de solteiro querendo ver um filme na televisão e de madrugada ainda por cima, era muita cara de pau.
Que situação! Sem companhia, tarde da noite e o único programa que tinha era uma droga de filme na televisão. Que miséria! Talvez fosse melhor sair e procurar alguma coisa para fazer, um bar talvez. Um bar com TV de preferência. Mas um bar com TV, a essa hora, só com Copa do Mundo, assim mesmo só se fosse no Austrália pra ter jogo a essa hora. O bar de sempre então. Simples e sem TV.

oooOOOooo

A primeira coisa que o cara disse me pegou de surpresa: nem tinha visto ele chegar!
“Chega aqui, meu! Vem rápido!”
“Peraí, o que é?”
“Preciso te pedir um favor, mas têm que ser já!” O cara não parecia que estava com pressa: ele parecia que ia ter um ataque. “Te dou cem paus se você entregar esse envelope para uma amiga minha aqui perto”.
Ele era um desses baixinhos. Os baixinhos sempre se esforçam mais que os outros. O cabelo já estava meio ralo no topo da cabeça e estava com a barba por fazer.
“Vamos com calma. Nem te conheço!”, falei. “De mais a mais não sou office-boy. Qual é o problema?”
“Pelo amor de Deus, companheiro”, ele suplicou, “entrega isso pra mim, te dou duzentos paus”.
“Você tá louco! Onde você quer que eu entregue isso? Aliás, o que é que têm aí? Por que você mesmo não entrega?”
“Escuta, eu não posso explicar nada. Te dou duzentos paus se você entregar. É aqui perto, maior limpeza, te juro! Quebra essa pra mim, meu irmão, por favor!”
“Sem querer ser chato, o meu dia já foi uma merda”, falei firme. “Vim aqui beber porque já deu tudo errado o dia inteiro. Agora vem você encher o saco! Vê se arruma outro pra Cristo, tá legal?” Comecei a ver as qualidades do outro lado do bar.
“Espera um pouquinho, só mais uma coisinha então”. Ele parecia calmo agora.
“O quê?”
“Seguinte: eu sei que você mora na Dr. Seng e sei onde você trabalha, se você não me der uma força agora vai se dar mal!”
Bom aí fedeu. Como é que o cara sabia onde era meu apartamento e onde era a agência? Como assim “se dar mal?” Resolvi conversar mais um pouquinho, já olhando meio de lado pra ver se achava alguém conhecido. Paranóia!
“Vamos conversar, tudo bem, fica tranqüilo, a gente vai dar um jeito”, disse conciliador. “Como é que você sabe onde eu moro?”
“Tranqüilo porra nenhuma. Ou entrega esta merda pra mim já, ou se ferra depois, você que sabe”. Ele olhava fixo pra mim.
“Calma, eu entrego, tudo bem?” Não é possível, pensei, que azar! “Dá aí que eu levo. Onde que é pra levar?”
“Na Major Sertório. Você conhece o Blue Night, ali na esquina da Bento Freitas? Pois é, entra lá procura a Margô e entrega pra ela”.
“Quem que eu digo que mandou?
“Não diz nada, ela sabe”, ele respondeu com um ar de pouco caso.
Existem pessoas para quem nada acontece nunca. Para outras, tudo acontece sempre. Eu devia ser uma síntese das duas. Já ia saindo com o envelope quando me lembrei.
“E a grana?”
“Que grana, meu? Pega aí quinze pro táxi e entrega essa onça rápido, senão você se ferra comigo”.
Eu bem que podia jogar a porcaria do envelope num bueiro ou então endereçar para um Fritz qualquer na Alemanha, mas não sei nem porque, tomei um táxi, que afinal custou vinte, e desci na porta do lugar.

oooOOOooo

Por que? Sou assim desde criança. Está tudo errado. Nunca gostei de bola, de esconde-esconde, de subir em árvore. Gostava dos brinquedos das meninas, das roupas de mamãe, de maquiagem. Não era menino. Tudo errado, desde sempre: as gozações, as brigas no recreio, os olhares esquisitos. Eles iam ver uma coisa. Iam pagar caro. Todos eles. Todos que olharam, falaram, riram. Tudo errado. Merda!

oooOOOooo

No nome do lugar estava escrito em enormes letras de metal escovado com uma luz azul iluminando por trás. Isso tudo pregado numa fachada de pedra avermelhada.
Na frente da enorme porta dupla de latão cor de cobre, um gorila com uma cara que parecia um engavetamento, conversava com uma loira que parecia tão espontânea e natural quanto o Rambo numa primeira comunhão. Lugar típico pra pegar turista. No mínimo vou ter que morrer com uma grana, só para respirar o ar fétido disso aí, pensei. Mas entrei. Qual seria a Margô. Será que era morena ou loira. Resolvi ficar indeciso um pouco.
“Tá sozinho?” Perguntou uma insinuante japonesa. Tive que pensar em Pearl Harbour, em uma quitanda e em uma oficina de conserto de relógios. Fiquei mais calmo.
“Mais ou menos. Estou procurando uma amiga”, falei.
“Eu não sirvo...?”
Pensei nos meus anos de Yoga e naquele curso de Mind Control do Dr. Silva.
“Não é isso, é que eu quero falar com ela mesmo”.
“Qual é o nome dela?”
“Bem, o nome dela é Margô, isto é, acho que é Margô”, falei meio sem jeito.
“Ah! A Margô. Peraí que eu vou chamar”. Bem já que vim até aqui, vou até o fim, pensei. Pedi um uísque. Duplo, que a noite não estava fácil.
O bar ficava à direita no fundo e parecia um labirinto de espelhos. Fiz cara de durão pra mim mesmo pelo menos duas vezes. Sentadas no balcão umas quatro mulheres desacompanhadas bebiam chá em um copo de uísque, ou talvez fossem apenas duas mulheres acompanhadas de outras duas. Numa das mesas um grupo de japoneses negociava com três moças em várias línguas. Nenhuma delas português.
O barman tinha acabado de colocar o Bell’s na minha frente quando vi a Karen. A Karen?! O que a Karen está fazendo aqui? Que loucura! A noite já estava ficando pra lá de estranha. E se ela me vir aqui, vai pensar o que? Ela parecia uma capa da Playboy ao vivo. Agora é que vai ser: ela vem vindo pra cá, resmunguei baixinho para mim mesmo.
“Edu!?! O que você está fazendo aqui?”, ela tinha surpresa na voz.
“Oi, Karen. Eu é que pergunto?”, devolvi meio irônico.
“O cara é esse aí”, falou a japonesa, que vinha logo atrás. Lembrei de Pearl Harbour de novo.
“Como assim? Quero falar com a Margô”, eu disse. “Tudo bem, tudo bem, pode deixar”, ela disse pra japonesa, e virando para mim falou:
“Meu nome aqui é Margô”.
“Já entendi, não precisa explicar. Um cara me mandou trazer uma carta pra você, isto é, para a Margô”. Ela estava com um vestido tão justo que parecia ter sido pintado nela, saltos altos o suficiente para fazer um cara normal sentir vertigem e um decote... Bem, deixa pra lá.
A Karen, quem diria, fazendo michê. E eu namorei essa mulher... Será que ela já estava nessa e eu nem desconfiava?!
“Há quanto tempo você vem aqui?”
“Deixe de ser idiota. Foi depois de você”.
“Espero que não tenha sido causa e efeito!”
“Cadê a carta?”
“Tá comigo. Mas vem cá, quem é aquele cara, o que ele é seu? É um tipo bem desagradável. Aliás, ele sabia uma porrada de coisas a meu respeito, explica esse troço direito pra mim”.
“Depois te explico. Me dá a carta”.
“Vamos com calma. Primeiro você conta a história, depois te dou”.
“Corta essa Edu. A carta é pra mim. De mais a mais, eu estou trabalhando, não posso ficar a vida inteira aqui com você. Passa o envelope!”, ela falou ríspida.
“Você não ficou a vida inteira comigo porque não quis. Agora você vai falar. Faz de conta que eu sou um cliente”, sugeri.
Fiz um olhar sacana.
“Qual é Edu, não me enche o saco! De mais a mais você não ganha pra isso”, ela respondeu.
“Te pago um drinque, tudo bem. O que você vai fazer mais tarde, gatinha?” Mordacidade explícita.
Olhar de ódio. “O.K., aceito”.
Até que a Karen ficava bem com esse ar de puta. Cansei de pedir pra ela andar sem sutiã e ela dizia que todo mundo ia ficar reparando. Agora esta aí com um decote que deve ser da grife do Carlos Zéfiro. Aliás, ficava ótimo nela. Sempre fui fã do Zéfiro.
“Me dá a porra da carta Edu. Agora é sério. Você não sabe com o que está mexendo”.
“Não vou dar até você me contar tudo, tintim por tintim. Como é que você ficou tão liberal, assim de repente?”
“Como de repente? A gente não se vê há mais de quatro anos. Aliás, você até ficou meio careca”. Ela tocou no meu ponto fraco.
“Careca nada! São só umas entradas. De mais a mais dá até um certo charme”.
“Sei. Desculpa de aleijado é muleta. Me dá a carta, pelo amor de Deus, Edu”.
“Assim você me deixa preocupado. Você está correndo algum perigo?”, perguntei realmente preocupado. “É melhor contar tudo pra mim”.
Pra falar a verdade, ela parecia mesmo aflita. Ficava olhando pros lados, prestando atenção em tudo. Tensa. Resolvi ceder um pouco. “Olha, vem comigo até lá em casa. Lá a gente conversa e eu te dou a maldita carta”.
“Agora não interessa mais. Você está de carro?”
Ela estava lívida olhando pra porta, onde uns tipos de terno e gravata solta, exatamente como você esperaria ver tipos desses vestidos, estavam olhando para todos os lados como quem procura alguém, o que não era muito absurdo num lugar onde todos vão procurar alguém. O mais grandinho tinha cabelos como palha de aço e o olhar mortiço de alguém que seria capaz de matar um homem por uma vaga na zona azul. O outro tinha cara de quem tinha tempo. Olhou devagar em torno, passou os olhos por nós e depois se voltou para o grandão e disse qualquer coisa. A Karen não parecia alguém que quisesse ser achada.
“Não! Vim de táxi. Aliás, pago pelo seu amiguinho”.
“Vem comigo!”, ela falou e levantou-se rapidamente. Fui. Mais por consideração ao braço que ela estava tentando arrancar do meu ombro. É um bom braço esse o meu, apesar do número de vezes que leva copos a mais até minha boca. Ela parecia estar com muita pressa.
“Aqueles caras estão a fim da minha pele”, ela sussurrou enquanto nos enfiava num labirinto que começava atrás de uma porta ao lado do bar, cheio de coisas que pareciam ter sido postas ali para tornar uma fuga mais lúdica um pouco, pregos, pedaços de madeira, coisas velhas, dei uns dois tropeços mas consegui evitar os objetos mais assassinos.
“E eu com isso?”, perguntei, pensando que estava na hora de me converter a alguma religião dessas novas que tem por aí. A minha vida não vinha dando muito certo ultimamente.
“Você dirige”, e enfiou uma chave na minha mão. Abriu uma portinha e estávamos na Bento Freitas.
“É aquele ali”, disse apontando pra um carro que devia ter sido comprado num leilão da polícia rodoviária e parecia ter sido fabricado durante a guerra. A do Paraguai.
“Isso aí não dá para fugir nem de um cara numa cadeira de rodas, quanto mais daqueles lá”, falei indignado.
“Cala a boca e vamos sair daqui depressa antes que eles comecem a fazer perguntas”.
Entrei no carro, dei a partida e saí, sentindo a mesma facilidade que um encanador sentiria fazendo uma operação no cérebro.
“Pra onde, madame?”, perguntei solicito.
“Pro inferno. Você não convidou pra ir na sua casa?”
“Você aceita cheque?”
“Eu te mato, Edu. Já tá tudo numa ruim e você fica fazendo gracinha comigo”.
“Não é bem assim. Estou meio fora de forma, já faz um tempinho que eu não leio livro policial. Você acha o que? Que eu passei os últimos anos na Bósnia?! A coisa mais parecida com isso que eu já fiz na minha vida foi correr do namorado da minha ex-mulher”.
“Você casou? Parabéns!”
“Depois sou eu que faço gracinha!”
Nessas alturas eu já queria pegar um atalho pela Penha para ir até em casa. Quem sabe fosse melhor ir pra praia. Eu tinha comprado uma casinha de um amigo, muito barato, talvez pelo fato de só se chegar lá a pé. Mas nessa hora tinha a vantagem do meu vizinho mais próximo ficar em outro município.
“Onde você mora agora?”, perguntou enquanto acendia o quarto cigarro na bituca do terceiro.
“No mesmo lugar”.
“E o que você tá fazendo indo pra marginal, Edu? Você acha que eu estou brincando? Pelo amor de Deus, vamos pra sua casa”.
Pelo tom de voz dela achei melhor ir para casa, a praia ficava pra outro dia.
“Foi só uma idéia que eu tive. Esquece”.
Era tudo uma questão de sorte. Pelo menos não tinha pago o uísque. Talvez tomando um quíntuplo quando chegasse em casa desse para empurrar a cômoda pra segurar a porta. Não que estivesse com medo, mas aquele tique no canto da boca tinha voltado.

oooOOOooo

Eu queria voltar pro tempo da escola. Os mais velhos. O Cleyton. Como amei aquele homem. Mas era um cachorro como os outros. Tinha vergonha de mim. Foi sempre assim. Era tudo escondido, depois da aula. Aí fingia que não me conhecia. Me xingava quando estava com os outros. Tirava sarro. Filho da puta também. Todo mundo é filho da puta. Só se salva minha mãezinha. Essa sempre me amou. Faz tudo por mim. Mas também mais ninguém. Todo mundo te rouba. Explora. Atira na sua cara que você é esquisito. Usa e depois joga fora.

oooOOOooo

Parei o carro mais pra baixo na rua e caminhamos juntos até a porta do prédio. O saguão estava com uma lâmpada queimada e o porteiro dormia placidamente com a cabeça apoiada no balcão de fórmica. Era pago pra dormir, o desgraçado. Não acordaria se eu entrasse montado num elefante com dor de barriga.
“A televisão está quebrada”.
Achei que talvez ela pudesse querer ver um filme na TV. Não queria.
“Onde é o banheiro?” ela perguntou assim que entrou.
Foi tomar um banho. Dei uma toalha nova para ela. Com o tempo que as mulheres levam pra tomar um banho daria pra um sujeito empreendedor fazer muita coisa. Uma tese sobre isso talvez. Fiz um uísque. Estava na hora de pensar com mais vagar, ordenar as coisas, avaliar a situação e tomar as decisões calmamente. Ao invés disso, fiz o segundo uísque que se encaminhou rapidamente pelo caminho do primeiro. Fiquei pensando em todas as encrencas em que já tinha me metido por causa de mulher. Estava mais ou menos no meio da primeira encrenca que me veio a cabeça quando notei que o segundo uísque tinha sumido sem mais nem menos. Levantei pra fazer o terceiro e ela saiu do banheiro.
“Faz um pra mim”, ela pediu.
Sair não é a palavra. Ela veio do banheiro parecendo um primeiro prêmio de loteria. Assim que consegui recobrar o fôlego estendi o copo pra ela e fiz um outro pra mim.
“Posso te emprestar um abrigo de ginástica, se você quiser”.
Ela estava enrolada na toalha como um presente. Pensei no Zéfiro de novo.
“Qual é, Edu. Já fiquei assim com você um monte de vezes”.
“Nunca impunemente!”
“Não se meta a besta numa hora dessas”, ela disse agressiva. “Onde está o abrigo?”
“Vou pegar. Não está na hora de você me contar um pouco dessa história? Ando meio sem notícias do submundo”, falei, “Coisas assim como quem é aquele cara? Quando foi que você mudou de profissão e quem são aqueles seus amiguinhos da boate?”
Ela olhou pra mim com um olhar ao mesmo tempo curioso e bravo. Parecia estar na dúvida entre me matar na hora ou me torturar lentamente antes.
“Você está achando que eu virei puta, é?”
“Não é bem isso, é que nunca tinha visto você... como é que posso explicar, nunca tinha te visto tão ‘produzida’, é isso!” Enfatizei a palavra. Ela apertou o copo com força e franziu os olhos.
“Não começa a jogar as coisas!”, gritei, de súbito, me lembrando que ela era Campeã de Arremesso de Sólidos, modalidade para casais.
“Edu, eu estou trabalhando!”
‘É, eu notei. Paga bem?”
O álcool é a única droga que faz você dizer coisas que não queria dizer de jeito nenhum. Às vezes até as que não podia.
‘Escuta aqui, Edu. Não sei se te mando a merda ou se te conto a verdade. É uma história tão comprida”.
Ela me pareceu como uma criança que tivesse envelhecido de repente. Senti vontade de pegar ela no colo e protegê-la como um pai faria com uma filha. Eu sou um sentimental, sempre fui. Por outro lado, não tenho filhos. Resolvi deixar o colo para mais tarde.
“Se eu puder ajudar em alguma coisa. A última vez que eu recusei ajuda a alguém fui mal compreendido”, falei, com uma ironia tão sutil que passou desapercebida como um hindu de turbante no Viaduto do Chá.
“Falando sério. Estou fazendo um trabalho para o jornal. Acontece que eu achei que ia ser uma coisa e está sendo outra completamente diferente”.
Acomodei-me na poltrona embaixo da janela. O abajur na mesinha ao lado do sofá jogava sombras suaves na parede.
“Me conta do começo”, falei, e peguei um cigarro do maço no bolso da camisa.
“Primeiro me dê a carta”.
A carta! Havia me esquecido completamente dela! Botei a mão primeiro no bolso de trás da calça, mas logo em seguida me lembrei de ter colocado no bolso do casaco. Dei o envelope.
“Arre, que já estava mais do que na hora”. Abriu e retirou de dentro uma folha e leu devagar.
“Filho da puta, Edu. Custava ter me dado antes? Você quase estraga tudo. É do Edmar”.
“Como estraga tudo? Passei meses bolando um jeito original de te procurar e você diz isso. Você precisa ver o que eu planejei para o nosso próximo encontro”, disse para fazer uma gracinha.
“Depois você conta”, ela respondeu levando a sério. Mau sinal.
“Quem é o Edmar?”, perguntei e estendi a mão para ela me dar o papel.
“Espera. Deixa eu contar a história desde o começo”, ela falou enquanto colocava o papel de volta no envelope. “Se eu te mostrar isso agora você não vai entender nada”. Ficou um momento em silêncio, depois olhou para mim e continuou.
“Acontece o seguinte. O Edmilson que trabalha lá na expedição do jornal contou para o Raul...”.
“Quem é o Raul?”
“Meu editor”, me respondeu com cara de saco.
“Desculpe. Vai”.
“Bom, O Edmilson falou para o Raul que ele conhecia um travesti que tinha aids e estava passando pra todo mundo. Bom, no começo o Raul ficou achando que era loucura do moleque, mas depois achou que ele estava muito assustado e resolveu escarafunchar um pouco. Parece que o Edmilson tinha dado umas com um travesti chamado Shirley e que uns estudantes tinham feito um exame de sangue em um monte de travestis e que esse Shirley tinha tido um positivo. Parece que a bicha enlouqueceu. Saiu do treme-treme onde morava e sumiu no mundo. Umas duas semanas depois ele telefonou para o Edmilson e contou a história. Até aí nada. O problema é que ele falou também que não ia morrer sozinho e que ia passar pra todo mundo”.
“E o Edmilson como é que está? Já fez o teste?” Perguntei.
“Já. Deu negativo. Mas isso não quer dizer nada porque parece que o corpo leva pelo menos uns quatro meses pra fabricar o anticorpo”.
“Nunca ouvi falar nisso”, falei sério.
“Você também nunca se interessou muito em saber pelo jeito”, ela respondeu meio incisiva.
“Tá legal. Continua”.
“Quando o Raul me contou a história eu tive a idéia de fazer uma entrevista com o tal do travesti. Primeiro porque eu sempre achei que devia ser muito pirante a cabeça de uma pessoa pra ela virar travesti, depois porque esse negócio da aids está mexendo com todo mundo e eu achei que a entrevista ia ser uma coisa putamente interessante, ia mexer com os órgãos de saúde do governo, com a atitude das pessoas em relação à prostituição, em relação aos travestis, com o medo da aids, essa coisa toda”.
“Lógico. E daí? O que é que isso tem a ver com você estar trabalhando de puta numa boate? Resolveu fazer laboratório antes?” A piada passou desapercebida.
“Tem tudo a ver. O único jeito de eu achar esse cara era através de uma menina que trabalha na boate. Parece que ela é da mesma cidade dele, sei lá. O que eu sei é que ela é a única pessoa no mundo em quem ele confia. Aí eu falei com o Edmar, que é repórter de policia lá no jornal, se ele conhecia alguém que pudesse me apresentar a ela. Ele conhecia. O Edmar conhece todo mundo. Ele lembrou que tinha uma amiga que trabalhava na boca que podia me apresentar”.
“Você não podia ser apresentada durante o dia?” Eu disse para falar alguma coisa e forçar a barra.
“Podia. Mas eu tive a esperança de que me vendo ali ela poderia resolver me levar ao lugar onde ele faz ponto na hora. De mais a mais, esses seus comentariozinhos já estão começando a me irritar. Puta não se veste assim como eu estou. Eu só não quis destoar muito”.
Ela soava magoada.
“Não está destoando nada”, eu disse com uma voz inocente. “Você estava perfeita”.
“Para Edu, porra! Deixa eu continuar. O Edmar me apresentou para uma tal de Kátia que me levou na boate. Ela me contou que a amiga de Shirley chamava-se Jussara e que sempre aparecia por lá a noite”.
“Isso foi hoje?”
“Não. Ontem. Eu contei para a Jussara mais ou menos o que eu queria fazer, sem falar no Edmilson, que eu não queria arrumar encrenca para ele, e ela me disse que ia falar com a Shirley e me daria uma resposta hoje.”
“E a carta?”, perguntei.
“Calma eu já chego lá”. Hoje de tarde o Edmar vem até minha mesa e diz que acha que falou besteira com uns amigos informantes que ele tem. Como assim, besteira? Perguntei para ele. Ele disse que tinha mencionado que eu ia fazer uma reportagem assim e assim e que acabou falando mais do que devia. Avisou que era para eu ficar atenta porque a polícia poderia querer saber de mim onde encontrar o tal do travesti”.
“Mas se você não sabia, como é que podia contar pra eles?”, perguntei num impulso.
“É, mas a polícia não sabe disso, ou então não acreditou no Edmar. De qualquer forma, para que eles vão trabalhar se a trouxa aqui puder fazer o serviço pra eles?”
“Eles chegaram em você?”
“Quase. E por sua culpa. A carta que você tanto quer saber o que diz, era um bilhete do Edmar dizendo que uns investigadores já sabem do meu encontro de hoje, sabe Deus como, e que estavam vindo atrás de mim na boate. Se você não tivesse feito tanta onda eu podia ter saído antes de eles chegarem”.
Ela soava dura agora.
“Espera um pouco, Karen. Como que eu ia saber. Você não quis falar nada. De qualquer jeito eu te tirei de lá, não tirei?”, falei, tentando me justificar. Desse jeito eu ainda ia acabar responsável pela difusão da Aids no Brasil.
“Tudo bem, vai, Edu. O fato é que a Jussara me passou o número de um telefone comunitário para eu ligar para o Shirley amanhã as nove da manhã em ponto”.
“Travesti não acorda a essa hora”, falei. É muito cedo”
“Como é que você sabe? Anda freqüentando algum?”, ela perguntou com um sorriso na voz.
“Não é isso”, respondi malcriado. “É que se eles trabalham de madrugada, devem dormir até tarde”.
“Brilhante, meu caro Watson”, ela falou me gozando. “Acontece que esse travesti está com a rotina um pouco alterada. Deve estar dobrando a jornada de trabalho”.
“Não fala assim. Seria horrível!”, e fiz uma cara devidamente horrorizada.
“É horrível de qualquer jeito. Esse é que é o charme da matéria”.
“Charme!?!”, e tentei parecer mais horrorizado ainda.
Ela estava obviamente cansada. Ainda estava embrulhada na toalha. Mas já não parecia mais um presente, parecia mais um passado. O que na verdade ela era. Pelo menos para mim. Eu tenho um amigo que diz que o passado é o melhor presente. Talvez. Essa conversa toda sobre travestis, polícia, aids... Estava me sentindo meio esquisito.
“E agora, o que você vai fazer?”, falei tentando dissipar o silêncio cansado que tinha se instalado na sala.
“Eu gostaria de dormir aqui. Acho que não seria uma boa idéia eu voltar pra casa com as coisas nesse pé. Tenho medo de eles aparecerem lá”.
O olhar dela ficou um pouco mais meigo.
“Dormir aqui ou dormir comigo”.
“Estou cansada, Edu”.
“E ainda dizem que a vida é fácil”, reclamei. “Você não podia ter escolhido uma reportagem mais calminha pra fazer, não”.
“Se não fosse por ela você não teria me encontrado”.
“Por falar nisso, quem é aquele cara que me deu a carta? Como foi que ele me achou?” Lembrei das ameaças dele. “Ainda preciso acertar umas coisinhas com esse cara”.
“Só pode ser o Edmar. Como ele te achou só Deus sabe”, ela falou pensativa. “Uma vez ele me viu com você no Supremo. No dia seguinte fez a maior gozação da redação. O gatinho da Karen, bar não é motel, essas coisas”.
“É, ele me abordou no Supremo. O Supremo... Bons tempos...!”
‘É...”.
Ficamos nos olhando. Ela tinha alguma coisa no olhar que eu não sabia o que era. Como se pensasse alguma coisa que nunca poderia contar pra mim. Uma ternura e um distanciamento ao mesmo tempo. Sempre tivera. Nunca entendi muito bem porque tínhamos terminado. Acho que nem ela.

oooOOOooo

É porque sou pobre, porque sou uma bicha. Eu sei. Se fosse rica era diferente. Não me tratavam feito lixo. Aqueles velhos podres me xingando na cama, implorando pra ser comidos. Depois me olham com nojo, quase jogam a grana na minha cara. Filhos de uma puta. Vou matar todos eles. Vou contaminar todos. Passar a praga. Eu vou, mas levo os filhos da puta comigo. Eles vão ver uma coisa. Vão mesmo. Estou cansada de levar porrada, de brigar na gilete, de não ter dinheiro. Agora não tem mais operação, não tem mais injeção. Só dar rabo e comer rabo até morrer, até matar todos aqueles finochios filhos de uma égua.

oooOOOooo

Acordei de manhã com o som dela no banheiro. Acho que as mulheres têm uma atração por banheiros. Levantei-me e fui até a cozinha. Dona Mafalda olhou para mim. O olhar dela era como um sermão da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo nos Santos Últimos Dias. Com ênfase nos Últimos Dias. Tomei um copo d’água tentando fazer de conta que estava sozinho.
“Que horas são?”
A voz de Karen veio do banheiro como uma ducha fria. Lembrei-me da noite anterior. Inconscientemente procurei a garrafa de uísque com o olhar. Era muito cedo para isso.
“Oito e meia”, gritei de volta.
Ela ia querer telefonar do apartamento. E depois? Será que ela ia querer que eu fosse com ela? Eu ia ter que ter uma boa desculpa se fosse pra faltar na agência. Ela apareceu na cozinha com o meu abrigo e com o cabelo enrolado numa toalha. Dona Mafalda olhou para ela de baixo pra cima, disse hmm, voltou-se e fingiu ir fazer qualquer coisa na área.
“Você me empresta o abrigo?”, sussurrou com um olhar maroto. “Eu não podia por a roupa de ontem”.
“Tudo bem”. Sorri pra ela. “Você quer café?”
“Quero”.
De repente estava muito gostoso estar com ela na cozinha, de manhã, usando meu abrigo e sorrindo pra mim. Senti uma ternura enorme por ela, como se tivéssemos voltado aos nossos primeiros tempos.
“Posso telefonar pra o Shirley daqui?”, ela perguntou.
Não eram os primeiros tempos. Definitivamente. Não havia nenhum Shirley nos nossos primeiros tempos. Nem Aids.
“Claro. Pode usar. Já são nove horas?” Olhamos os dois para o relógio na parede da cozinha. Faltavam quinze.
“Bem, já já preciso começar a me arrumar para ir para a agência”, eu falei mudando meio rapidamente de assunto.
“Você não vai ficar comigo?”, ela perguntou indignada como se eu a estivesse abandonando depois de dez anos de casamento.
“Não é isso. É que eu tenho que trabalhar e...”, ela não me deixou continuar. Levantou da mesa e foi pra sala.
“Ser bunda mole é coisa de publicitário mesmo ou eles te pagam extra pra isso?” A voz parecia bem zangada.
“Não precisa ser estúpida. Quem precisa de coragem é você que escolheu ser repórter, não eu”, devolvi meio estúpido também.
“Eu escolhi ser repórter, não isca de polícia. Pô, Edu. Você bem que podia ficar comigo. Você vai sair daquela sua vidinha da agência pro bar, do bar pra casa. Você vai ver como é a vida fora das campanhas. Eu estou com medo de ficar nisso sozinha, o Edmar está manjado e pra você vai ser uma coisa nova, diferente”.
“Põe diferente nisso”, resmunguei de volta. “Tudo bem. Acho que dá pra inventar uma desculpa qualquer lá na agência, afinal, o pior que pode acontecer é eu ficar desempregado”, disse isso já com um sorriso nos lábios. Ela arregalou os olhos de repente.
“Que horas são?”
“Nove e cinco. Liga lá, senão o cara desiste e adeus reportagem”, falei meio urgente.
Ela levantou, pegou a bolsa na cadeira e voltou a sentar no sofá perto do telefone remexendo dentro da bolsa. Achou a carta na bolsa, colocou ao lado do telefone e começou a teclar o número.
Um tempo, Eu só ouvi o lado de cá da conversa.
“Alô. Quem Fala”.
“- “.
“Eu sou a Margô. A Jussara me disse pra te ligar”.
“- “.
“Como você quiser. Aonde você quer que eu vá?”
“- “.
“E onde fica isso?”
“- “.
“O.K. Já entendi. Eu conheço o lugar. A que horas?”
“- “.
“Não. Eu vou com um fotógrafo amigo meu. Limpeza”.
Ela desligou o aparelho e ficou quieta com olhar meio parado.
“E então...?”, perguntei.
Ela olhou lentamente para mim e disse:
“Está combinado. Daqui a uma hora e meia na casa da mãe dele. É no Ipiranga. Perto da saída da Imigrantes. Uma travessa da Ricardo Jafet. Eu falei que você era fotógrafo”.
“Só isso?”
“Só”.
Tomei um banho, me vesti e liguei para a agência. Disse que não estava me sentindo bem e não iria. Pelo menos não de manhã. De qualquer forma não menti. Não estava mesmo me sentindo muito bem com essa história toda. Ela ficou o tempo todo no mesmo lugar sem se mexer.
“Vamos?” falei, de pé no meio da sala. “Já são quinze pras dez”.
“Você não vai ser o fotógrafo, Edu?”, ela perguntou. “Cadê a máquina?”
“É verdade”, respondi e voltei para o quarto atrás da minha velha Pentax Spotmatic. Por sorte ainda tinha filme dentro.
“O.K., vamos”, se levantou meio sonada, passou por mim e foi em direção a porta. Liguei a secretária eletrônica, disse até logo pra dona Mafalda que resmungou qualquer coisa e saímos.

oooOOOooo

Minha mãezinha, tadinha. Não merecia. Ela não merecia. Mas agora é tarde, vou botar pra foder. Me disseram que estão atrás de mim. Não tenho medo de polícia. Não tenho medo de cara feia. Não tenho medo de ninguém. Se vierem me pegar, corto todo mundo na gilete. Me corto toda. Vai ser sangue pra todo lado. Vai morrer todo mundo com a boca cheia de formiga. Quero ver eles explicarem em casa que estão com a praga gay. Eles vão ver uma coisa. Eles que tentem.
Já devo ter passado pra uns vinte. Não precisa camisinha não, meu bem. Há há. Faz-me rir. Só queria ver a cara deles na hora de pegar o exame. Dava tudo pra ver a cara deles. Filhos da puta. Canalhas. Cachorros. Eu ponho devagarzinho, você vai adorar. Lindo. Agora você. Eles vão ver uma coisa. Tudo secando, descarnando, morrendo. É, meu bem, deve ter sido aquela bicha, aquele traveco. A vingança da boneca. É, meu bem, foi a boneca sim. Foi a boneca aqui que te matou. Eu mesma. Só tenho pena da minha mãezinha. Tadinha. Não merecia. Não merecia mesmo. Eles vão me pagar por isso. Ô se vão. Filhos da puta.

oooOOOooo

A relíquia da guerra do Paraguai estava no mesmo lugar. Estes carros têm o conforto de não serem roubados. O único risco é serem varridos pelo lixeiro. Comprei um Marlboro no bar em frente, gastei uns cinco minutos fazendo a jóia pegar e estávamos a caminho.
O dia estava claro, mas sem sol. Aquele claro cinzento de São Paulo. O trânsito estava com aquele ritmo um pouco mais acelerado das sextas-feiras com um pouco mais de ansiedade pelo fim-de-semana no rosto das pessoas. Não foi difícil encontrarmos a tal rua. Na quinta ou sexta tentativa conseguimos. Era uma rua de classe média baixa, com sua quota de bares de esquina, vendas, grades de alumínio altas fechando casas pequenas com portão com bunda para embutir um carro durante a noite. A casa que procurávamos ficava numa curva e era igual a muitas outras casas da rua. No quintal tinha um menino de uns quatro anos brincando e que correu pra dentro pra chamar a tal de Shirley quando perguntamos por ela. Fiquei imaginando que espécie de vida familiar aquele garoto teria. Como é que você explica um travesti na sua casa para os outros meninos da rua. Talvez eles nem pensassem nisso. Ou talvez fosse uma tragédia. Talvez a coisa mais comum do mundo. Sei lá. Uma senhora de uns sessenta anos veio abrir o portão.
“Vamos entrar. A Shirley está no banho, mas já está saindo”, ela falou isso enquanto fechava o portão de novo. Parecia estar falando sozinha. A voz era baixa como se não fizesse muita questão que ouvíssemos.
Entramos numa sala atravancada com uma mesa de jantar desproporcional ao lugar e um sofá verde e velho encostado na parede. Na parede em cima do sofá tinha um daqueles quadros redondos com a foto de um senhor e uma senhora super retocada que devia ter visto dias melhores. As outras coisas da sala eram uma mesinha de vidro com um três em um em cima e no outro canto meio enviesada em relação ao sofá, a inevitável televisão com uma toalhinha de renda embaixo da antena. A velha pediu licença e sumiu por uma porta com uma cortina dessas de caroços de madeira. Logo depois barulho de louça. Pelo menos ia ter um cafezinho.

oooOOOooo

Lixo. Eu não sou lixo. Mas parecia. A cara de nojo que fazem. Lixo são eles. Finóchios canalhas. Não agüentava mais. Se me pegarem me mato. Me mato na gilete. Eles vão ver como é bom ser lixo. Ser olhado com nojo. Emagrecendo, sumindo. Virando carniça em vida. Ninguém quer encostar em você. Te dar a mão. Filhos duma cadela. Todos eles. Lixos. Lixos. Lixos. É tudo um grande lixo. Mundo de merda. Lotado de filho da puta, de viados. Eles que não chegassem perto de mãezinha. Ah, não. De mãezinha não. Mato todo mundo antes. Mato mesmo. Juro. Os lixos.

oooOOOooo

“O travesti é o lixo do mundo! E agora vou esfregar esse lixo na cara deles”.
Olhei para o lugar de onde vinha a voz. Era um travesti sem a menor dúvida. Pescoço grosso demais para uma mulher. Pés grandes demais também. Afora isso ele era uma mulher linda, se é que posso falar assim. Estava parado na porta numa pose dramática. As mãos na cintura, os pés separados, uma calça de napa preta justa, uma blusa branca larga e meio transparente deixando óbvios um par de peitos enormes e eretos que fariam o orgulho de qualquer vendedor de silicone. No rosto uma expressão bonita, forte e um pouco atrevida, com o queixo meio levantado, desafiante.
“Escreve isso aí! Vou levar um monte de gente comigo! Quero ver todo mundo borrado de medo!”
Ele puxou uma cadeira da mesa, sentou, acendeu um cigarro, procurou um cinzeiro com os olhos, achou, levantou e foi buscar. Quando voltou virou-se para a Karen e perguntou:
“É o seu gatinho?” e fez um gesto com o cigarro na minha direção.
‘É, mais ou menos... Ele é fotógrafo lá no jornal”, ela disse.
“Essa aí é que é a máquina?”
Era a minha vez.
“É velha, mas é a que eu mais gosto”, respondi.
“Não têm importância. Eu não quero que tire fotografia mesmo. Parece que os homens estão atrás de mim. Parece que eu passei a vida com os homens atrás de mim”.
Achei melhor não achar graça, literalmente. Fiz cara de paciência, fazer o que. A Karen parecia meio sem jeito. Branco na sala. A mãe trouxe uma bandeja com três cafés. Nós tomamos o café em silêncio. Acendemos cigarros.
“Vocês querem ver o meu portfólio?”, perguntou e sumiu pela mesma porta por onde entrara. Voltou logo em seguida com uma pasta tipo portfolio preta.
Ele era artista. Quem não é artista nessa vida. Já tinha estado em shows na Argentina e no Paraguai. Fotos, artigos em jornais já meio amarelados, mais fotos com ele sempre como vedete de teatro de rebolado, uns programas de lugares com nomes estranhos, alguns cartazes em que o nome Shirley Lane aparecia no canto como show secundário de algum outro artista.
Enquanto mostrava, ele ia falando o que era uma coisa e o que era outra, e se sentia na voz dele toda uma carga emocional, provavelmente de sonhos acalentados durante muito tempo e que tinham sido frustrados. Havia ressentimento naquela voz.
Karen ia ouvindo e fazendo anotações num caderninho. De vez em quando fazia uma pergunta. Quando abordou o assunto principal com um sutil – e agora, como você está? Ele se exaltou imediatamente.
Destilou um ódio terrível conta tudo e contra todos. Desde a hipocrisia da classe média que vende uma imagem moralista e freqüenta esquinas escuras de madrugada até da polícia que como sanguessuga extorque dinheiro, dá porrada, leva em cana e que sempre está disposta a abrir um inquérito que não apura nada. O tempo todo dizia que queria contaminar todo mundo, que não iam se esquecer dele e que carregava uma gilete pra espirrar sangue em todo mundo se tentassem por a mão nele. O tempo todo ele gesticulava e andava pela sala, depois parava e olhava pra nós com olhos que pareciam pedra polida, atirando o rosto pra frente. E fumava, fumava muito. A Karen conduzia a conversa como podia. Às vezes amansando e às vezes dando corda. Estava tensa, mas segura de si. Eu estava começando a ficar parecido com o sofá: velho e verde.
Aí chegou a polícia.
Acho que fui o primeiro a prestar atenção nas sirenes. Eles estavam muito envolvidos para notar, mas quando foi ficando mais próximo, a Shirley se calou de repente. Virou um olhar de ódio para a Karen.
“Sua cadela! Você me dedou!”
“Eu não dedei ninguém, juro!” a Karen falou enquanto se levantava assustada da cadeira. “Tem algum jeito de sair daqui por trás da casa?”
“Eu vou matar vocês!”, ela gritou e correu para o quarto.
A Karen se aproximou de mim no sofá enquanto eu levantava pra tentar ver alguma coisa pela janela.
“Eu vou sujar todo mundo de sangue!” Ela já apareceu com o pulso cortado vindo na nossa direção. Eu meio de susto, meio por reflexo empurrei a mesa de centro com o pé, fechando a passagem dele ao lado da televisão. A velha estava estática na porta da cozinha. Parecia um desses totens de madeira com uma expressão de horror petrificada. O sangue escorria pela mão dele, pela calça e pingava no chão. Ele segurava a gilete na outra mão e sacudia o braço por cima da mesa. Ele chutou uma cadeira.
“Filhos da puta!!!”, gritou e tentou vir pelo outro lado. “Vocês vão ver!”
Segurei a Karen perto de mim. Ouvi o barulho do portão e alguém tentando abrir a porta. Estava trancada.
A Shirley subiu na mesa de centro e chegou até nós dois. Pancadas fortes na porta da frente. Estavam tentando arrombar. Shirley gritava e xingava a plenos pulmões. Karen subiu na mesa também e passou para o outro lado. Tentei segurar a Shirley sem encostar no sangue dela ao mesmo tempo. Com um gesto violento ela me empurrou e voltou para a passagem do corredor. Caí sentado no sofá.
A porta da frente estourou e abriu com violência.
“Quietos!”
Era um homem vestido com jeans, com mais ou menos trinta anos, que impunha um senhor respeito. Provavelmente devido ao fato de estar com um baita três-oitão apontado com as duas mãos. Ele foi entrando bem devagar. Atrás dele vieram outros três, igualmente armados. Pelo menos um deles era o mesmo que eu tinha visto na boate. Só um estava de terno.
Shirley enlouqueceu. Gritou, xingou, chutando tudo que estivesse no seu caminho enquanto corria de volta para o quarto. Dizia que ia passar aids pra tudo quanto é filho da puta e que ia morrer todo mundo. O primeiro homem, com o revolver em punho, foi atrás dele no quarto.
“Larga essa porra!”, ele falou seco.
“Vou te cortar, seu filho da puta, viado! Vem me pegar!”
“Larga essa gilete, porra, senão eu atiro...”. Ele não parecia estar brincando.
“Eu vou te cortar... você vai morrer!”, a Shirley gritou histérica.
Ouvimos um tiro e depois mais nada.
“Essa porra aí pega”, ele falou simplesmente quando entrou de volta na sala. “Acertei o cara. Esse aí não vai morrer de peste, não. Já era...”, ele falou sem se dirigir a ninguém em especial. Virou-se para um dos outros e disse: “Beto, manda vir o rabecão. Eu não sou louco de por a mão nisso aí”.
A velha ficou sumida num canto até a hora que levaram o filho pra fora, depois começou a chorar baixinho. Dava pra ver que não era a primeira vez que ela chorava por ele. Talvez nem fosse a última.
Fomos embora.
“Não fui eu que entreguei ele, Edu, te juro!”, Karen disse assim que bateu a porta do carro.
Passei o braço pelo ombro dela. “Eu sei. Já acabou. Tá tudo bem”.
Não estava, mas na verdade não era nada. Era só mais um dia. As putas, a polícia, os travestis, os ladrões, os informantes, a sujeira, as matérias pro jornal e as minhas campanhas. Era tudo parte da mesma porcaria. Era assim mesmo todo dia. Mundo de merda.
Deixamos o carro no estacionamento do jornal e andei com ela até a porta. Nos despedimos. Observei enquanto ela desaparecia no saguão do prédio.
Andei uns metros pela calçada, acendi um cigarro e fiquei pensando.
Que coisa louca que era a vida de algumas pessoas. Pensando bem, que aventura estranha e doida essa que eu tinha me metido. Achei que tinha aprendido alguma coisa, só não sabia muito bem o que. Talvez tivesse ficado com a casca mais dura, ou então estivesse ainda em estado de choque. Não dava para saber.
Cada uma que a Karen me arruma, pensei e suspirei fundo.
E se eu conhecia bem a Karen, essa não tinha sido nada, a próxima ia ser bem pior.