1/01/2008

Isca de Polícia


Abri os olhos. Algumas cenas do sonho me vieram a mente. O mesmo sonho de novo. Fazia meses. Sempre uma situação na qual tinha grande dificuldade de enxergar. Não que eu seja um lince quando estou acordado, mas no sonho estava praticamente cego. Não, era mais como se tivesse a vista tão embaçada que me impedisse de focalizar o que estava na minha frente. Percebia vultos que eram familiares e que sempre queriam que fizesse alguma coisa, como se não percebessem a minha aflição. Aflito. Acordei assim. Como contraste o quarto estava com aquela luminosidade de um dia de sol. Alguma qualidade no ambiente ou no som do mundo que me dá vontade de ser qualquer outra pessoa menos eu mesmo de ressaca. Associo essas manhãs a certos domingos em que estivesse tranqüilo, sem sobriedade nem ansiedade. Como se o presente fosse inabalável por essa semelhança a domingos do passado. Como se tudo na vida fosse mágico. Por outro lado, eu não acredito em mágica.
Mais um dia. Passei a prestar atenção nos ruídos da casa. Tentei discernir os barulhos da cozinha. Dona Mafalda preparando um café. Dona Mafalda era uma negra velha que estava comigo há muitos anos. Ela tinha aquele jeito humilde dos pobres de antigamente. Fazia tudo muito cuidadosamente, mas sempre da maneira mais absurda possível. Ouviu calada quando a principio tentei estabelecer uma rotina que servisse aos meus interesses. Mas ela tinha outra opinião. Agia como se precisasse ensinar aos mais jovens quais eram os reais interesses de uma casa, a rotina mais conveniente. De modo que ela tinha lá suas manias, mas o lugar funcionava. É verdade que a maioria das coisas na cozinha eram itinerantes e na versão dela os plugs moravam fora das tomadas. Ela também mantinha um outro emprego de faxineira num prédio do centro ao qual nunca quis renunciar, apesar dos insistentes pedidos, freqüentes ameaças e das ofertas financeiras mais tentadoras. E, além disso, o café da manhã dela demorava pra sair.
Ouvi um barulho monótono meio distante na rua. Parecia de uma orquestra de britadeiras. Deviam estar assaltando um banco. Não havia muito movimento, devia ser umas quinze pras sete. De que dia mesmo? Com certeza uma quinta-feira. Sempre é quinta-feira. Vagas lembranças do porre da noite anterior. O problema é que os porres estão ficando tão iguais que as lembranças vagas da noite anterior se parecem com as vagas lembranças de outras noites anteriores. Joguei uma perna pra fora da cama, estava frio, botei ela pra dentro de novo. O sonho, o porre, tudo mais ou menos a mesma coisa. A solução pra tudo é um banho. Quando você não sabe quem você é direito a essa hora da manhã, tome um banho. É a única solução.
Senti-me um pouco melhor, só notava agora umas duas ou três britadeiras em uníssono. Tomei um café que desceu como uma luva, isto é, com gosto de luva. Saí pra rua. Isto é praticamente automático comigo quando estou nesse estado.
Sou uma dessas pessoas.
O diálogo com a empregada tinha sido o de sempre. Olhava-me com aquele olhar de decadência moral dos costumes e um rapaz tão moço e onde isto tudo vai parar. De qualquer modo passava minhas camisas sem abrir um buraco nelas como o chinês da lavanderia. Pra mim já era alguma coisa. Precisava dar uma solução ao problema de ter sonhos recorrentes. Maldito sonho. O mundo das oito e meia da manhã deveria ser proibido. Mais uma vez o ritual de tomar cerveja ignorando os olhares discretos como holofotes que as pessoas que acordam a essa hora dirigem a tipos como eu.
O dia na agência estava ótimo. Uma espécie de refilmagem de Drácula, só que feita no México. Tinha uma campanha para criar. O cliente tinha uma imaginação de Spielberg e um orçamento brasileiro. Afinal tinha que justificar os trocados que me davam por salário. Fiz uma hora de concentração olhando para o jornal no banheiro e dormi de olhos abertos durante dois brainstorms. Um dia produtivo. Tomei dois uísques no Sujinho’s da esquina e voltei para o apartamento. Oito e meia de novo. Só que da noite, o que era melhor. Ouvi durante dez minutos o barulho de ocupado que vinha da secretária eletrônica numa espécie de homenagem que eu presto diariamente às pessoas que não me deixam recado. Mais um uísque. Tentei três mulheres diferentes. Duas não atenderam e a terceira... Bom, deixa pra lá, eu queria mesmo ficar sozinho. Foi o que fiz.
Vi umas três horas de TV esperando por um filme, mas as coisas quebram ou dão errado só quando não podem. A conspiração das coisas. Queria ver o filme, e agora, em cima da hora, a porcaria da TV, puff, resolveu quebrar. Sem mais aquela. Apagou e pronto. Fiquei uns minutos olhando a tela escura. Depois levantei, dei umas porradas no lado da TV. Nada.
Talvez se fosse até o Álvaro, lá desse pra ver. Mas era meio tarde para incomodar, não tanto por ele, mas pela mulher dele e os filhos, que já deviam estar dormindo. Ele era um dos que não escapou. Um amigo de solteiro querendo ver um filme na televisão e de madrugada ainda por cima, era muita cara de pau.
Que situação! Sem companhia, tarde da noite e o único programa que tinha era uma droga de filme na televisão. Que miséria! Talvez fosse melhor sair e procurar alguma coisa para fazer, um bar talvez. Um bar com TV de preferência. Mas um bar com TV, a essa hora, só com Copa do Mundo, assim mesmo só se fosse no Austrália pra ter jogo a essa hora. O bar de sempre então. Simples e sem TV.

oooOOOooo

A primeira coisa que o cara disse me pegou de surpresa: nem tinha visto ele chegar!
“Chega aqui, meu! Vem rápido!”
“Peraí, o que é?”
“Preciso te pedir um favor, mas têm que ser já!” O cara não parecia que estava com pressa: ele parecia que ia ter um ataque. “Te dou cem paus se você entregar esse envelope para uma amiga minha aqui perto”.
Ele era um desses baixinhos. Os baixinhos sempre se esforçam mais que os outros. O cabelo já estava meio ralo no topo da cabeça e estava com a barba por fazer.
“Vamos com calma. Nem te conheço!”, falei. “De mais a mais não sou office-boy. Qual é o problema?”
“Pelo amor de Deus, companheiro”, ele suplicou, “entrega isso pra mim, te dou duzentos paus”.
“Você tá louco! Onde você quer que eu entregue isso? Aliás, o que é que têm aí? Por que você mesmo não entrega?”
“Escuta, eu não posso explicar nada. Te dou duzentos paus se você entregar. É aqui perto, maior limpeza, te juro! Quebra essa pra mim, meu irmão, por favor!”
“Sem querer ser chato, o meu dia já foi uma merda”, falei firme. “Vim aqui beber porque já deu tudo errado o dia inteiro. Agora vem você encher o saco! Vê se arruma outro pra Cristo, tá legal?” Comecei a ver as qualidades do outro lado do bar.
“Espera um pouquinho, só mais uma coisinha então”. Ele parecia calmo agora.
“O quê?”
“Seguinte: eu sei que você mora na Dr. Seng e sei onde você trabalha, se você não me der uma força agora vai se dar mal!”
Bom aí fedeu. Como é que o cara sabia onde era meu apartamento e onde era a agência? Como assim “se dar mal?” Resolvi conversar mais um pouquinho, já olhando meio de lado pra ver se achava alguém conhecido. Paranóia!
“Vamos conversar, tudo bem, fica tranqüilo, a gente vai dar um jeito”, disse conciliador. “Como é que você sabe onde eu moro?”
“Tranqüilo porra nenhuma. Ou entrega esta merda pra mim já, ou se ferra depois, você que sabe”. Ele olhava fixo pra mim.
“Calma, eu entrego, tudo bem?” Não é possível, pensei, que azar! “Dá aí que eu levo. Onde que é pra levar?”
“Na Major Sertório. Você conhece o Blue Night, ali na esquina da Bento Freitas? Pois é, entra lá procura a Margô e entrega pra ela”.
“Quem que eu digo que mandou?
“Não diz nada, ela sabe”, ele respondeu com um ar de pouco caso.
Existem pessoas para quem nada acontece nunca. Para outras, tudo acontece sempre. Eu devia ser uma síntese das duas. Já ia saindo com o envelope quando me lembrei.
“E a grana?”
“Que grana, meu? Pega aí quinze pro táxi e entrega essa onça rápido, senão você se ferra comigo”.
Eu bem que podia jogar a porcaria do envelope num bueiro ou então endereçar para um Fritz qualquer na Alemanha, mas não sei nem porque, tomei um táxi, que afinal custou vinte, e desci na porta do lugar.

oooOOOooo

Por que? Sou assim desde criança. Está tudo errado. Nunca gostei de bola, de esconde-esconde, de subir em árvore. Gostava dos brinquedos das meninas, das roupas de mamãe, de maquiagem. Não era menino. Tudo errado, desde sempre: as gozações, as brigas no recreio, os olhares esquisitos. Eles iam ver uma coisa. Iam pagar caro. Todos eles. Todos que olharam, falaram, riram. Tudo errado. Merda!

oooOOOooo

No nome do lugar estava escrito em enormes letras de metal escovado com uma luz azul iluminando por trás. Isso tudo pregado numa fachada de pedra avermelhada.
Na frente da enorme porta dupla de latão cor de cobre, um gorila com uma cara que parecia um engavetamento, conversava com uma loira que parecia tão espontânea e natural quanto o Rambo numa primeira comunhão. Lugar típico pra pegar turista. No mínimo vou ter que morrer com uma grana, só para respirar o ar fétido disso aí, pensei. Mas entrei. Qual seria a Margô. Será que era morena ou loira. Resolvi ficar indeciso um pouco.
“Tá sozinho?” Perguntou uma insinuante japonesa. Tive que pensar em Pearl Harbour, em uma quitanda e em uma oficina de conserto de relógios. Fiquei mais calmo.
“Mais ou menos. Estou procurando uma amiga”, falei.
“Eu não sirvo...?”
Pensei nos meus anos de Yoga e naquele curso de Mind Control do Dr. Silva.
“Não é isso, é que eu quero falar com ela mesmo”.
“Qual é o nome dela?”
“Bem, o nome dela é Margô, isto é, acho que é Margô”, falei meio sem jeito.
“Ah! A Margô. Peraí que eu vou chamar”. Bem já que vim até aqui, vou até o fim, pensei. Pedi um uísque. Duplo, que a noite não estava fácil.
O bar ficava à direita no fundo e parecia um labirinto de espelhos. Fiz cara de durão pra mim mesmo pelo menos duas vezes. Sentadas no balcão umas quatro mulheres desacompanhadas bebiam chá em um copo de uísque, ou talvez fossem apenas duas mulheres acompanhadas de outras duas. Numa das mesas um grupo de japoneses negociava com três moças em várias línguas. Nenhuma delas português.
O barman tinha acabado de colocar o Bell’s na minha frente quando vi a Karen. A Karen?! O que a Karen está fazendo aqui? Que loucura! A noite já estava ficando pra lá de estranha. E se ela me vir aqui, vai pensar o que? Ela parecia uma capa da Playboy ao vivo. Agora é que vai ser: ela vem vindo pra cá, resmunguei baixinho para mim mesmo.
“Edu!?! O que você está fazendo aqui?”, ela tinha surpresa na voz.
“Oi, Karen. Eu é que pergunto?”, devolvi meio irônico.
“O cara é esse aí”, falou a japonesa, que vinha logo atrás. Lembrei de Pearl Harbour de novo.
“Como assim? Quero falar com a Margô”, eu disse. “Tudo bem, tudo bem, pode deixar”, ela disse pra japonesa, e virando para mim falou:
“Meu nome aqui é Margô”.
“Já entendi, não precisa explicar. Um cara me mandou trazer uma carta pra você, isto é, para a Margô”. Ela estava com um vestido tão justo que parecia ter sido pintado nela, saltos altos o suficiente para fazer um cara normal sentir vertigem e um decote... Bem, deixa pra lá.
A Karen, quem diria, fazendo michê. E eu namorei essa mulher... Será que ela já estava nessa e eu nem desconfiava?!
“Há quanto tempo você vem aqui?”
“Deixe de ser idiota. Foi depois de você”.
“Espero que não tenha sido causa e efeito!”
“Cadê a carta?”
“Tá comigo. Mas vem cá, quem é aquele cara, o que ele é seu? É um tipo bem desagradável. Aliás, ele sabia uma porrada de coisas a meu respeito, explica esse troço direito pra mim”.
“Depois te explico. Me dá a carta”.
“Vamos com calma. Primeiro você conta a história, depois te dou”.
“Corta essa Edu. A carta é pra mim. De mais a mais, eu estou trabalhando, não posso ficar a vida inteira aqui com você. Passa o envelope!”, ela falou ríspida.
“Você não ficou a vida inteira comigo porque não quis. Agora você vai falar. Faz de conta que eu sou um cliente”, sugeri.
Fiz um olhar sacana.
“Qual é Edu, não me enche o saco! De mais a mais você não ganha pra isso”, ela respondeu.
“Te pago um drinque, tudo bem. O que você vai fazer mais tarde, gatinha?” Mordacidade explícita.
Olhar de ódio. “O.K., aceito”.
Até que a Karen ficava bem com esse ar de puta. Cansei de pedir pra ela andar sem sutiã e ela dizia que todo mundo ia ficar reparando. Agora esta aí com um decote que deve ser da grife do Carlos Zéfiro. Aliás, ficava ótimo nela. Sempre fui fã do Zéfiro.
“Me dá a porra da carta Edu. Agora é sério. Você não sabe com o que está mexendo”.
“Não vou dar até você me contar tudo, tintim por tintim. Como é que você ficou tão liberal, assim de repente?”
“Como de repente? A gente não se vê há mais de quatro anos. Aliás, você até ficou meio careca”. Ela tocou no meu ponto fraco.
“Careca nada! São só umas entradas. De mais a mais dá até um certo charme”.
“Sei. Desculpa de aleijado é muleta. Me dá a carta, pelo amor de Deus, Edu”.
“Assim você me deixa preocupado. Você está correndo algum perigo?”, perguntei realmente preocupado. “É melhor contar tudo pra mim”.
Pra falar a verdade, ela parecia mesmo aflita. Ficava olhando pros lados, prestando atenção em tudo. Tensa. Resolvi ceder um pouco. “Olha, vem comigo até lá em casa. Lá a gente conversa e eu te dou a maldita carta”.
“Agora não interessa mais. Você está de carro?”
Ela estava lívida olhando pra porta, onde uns tipos de terno e gravata solta, exatamente como você esperaria ver tipos desses vestidos, estavam olhando para todos os lados como quem procura alguém, o que não era muito absurdo num lugar onde todos vão procurar alguém. O mais grandinho tinha cabelos como palha de aço e o olhar mortiço de alguém que seria capaz de matar um homem por uma vaga na zona azul. O outro tinha cara de quem tinha tempo. Olhou devagar em torno, passou os olhos por nós e depois se voltou para o grandão e disse qualquer coisa. A Karen não parecia alguém que quisesse ser achada.
“Não! Vim de táxi. Aliás, pago pelo seu amiguinho”.
“Vem comigo!”, ela falou e levantou-se rapidamente. Fui. Mais por consideração ao braço que ela estava tentando arrancar do meu ombro. É um bom braço esse o meu, apesar do número de vezes que leva copos a mais até minha boca. Ela parecia estar com muita pressa.
“Aqueles caras estão a fim da minha pele”, ela sussurrou enquanto nos enfiava num labirinto que começava atrás de uma porta ao lado do bar, cheio de coisas que pareciam ter sido postas ali para tornar uma fuga mais lúdica um pouco, pregos, pedaços de madeira, coisas velhas, dei uns dois tropeços mas consegui evitar os objetos mais assassinos.
“E eu com isso?”, perguntei, pensando que estava na hora de me converter a alguma religião dessas novas que tem por aí. A minha vida não vinha dando muito certo ultimamente.
“Você dirige”, e enfiou uma chave na minha mão. Abriu uma portinha e estávamos na Bento Freitas.
“É aquele ali”, disse apontando pra um carro que devia ter sido comprado num leilão da polícia rodoviária e parecia ter sido fabricado durante a guerra. A do Paraguai.
“Isso aí não dá para fugir nem de um cara numa cadeira de rodas, quanto mais daqueles lá”, falei indignado.
“Cala a boca e vamos sair daqui depressa antes que eles comecem a fazer perguntas”.
Entrei no carro, dei a partida e saí, sentindo a mesma facilidade que um encanador sentiria fazendo uma operação no cérebro.
“Pra onde, madame?”, perguntei solicito.
“Pro inferno. Você não convidou pra ir na sua casa?”
“Você aceita cheque?”
“Eu te mato, Edu. Já tá tudo numa ruim e você fica fazendo gracinha comigo”.
“Não é bem assim. Estou meio fora de forma, já faz um tempinho que eu não leio livro policial. Você acha o que? Que eu passei os últimos anos na Bósnia?! A coisa mais parecida com isso que eu já fiz na minha vida foi correr do namorado da minha ex-mulher”.
“Você casou? Parabéns!”
“Depois sou eu que faço gracinha!”
Nessas alturas eu já queria pegar um atalho pela Penha para ir até em casa. Quem sabe fosse melhor ir pra praia. Eu tinha comprado uma casinha de um amigo, muito barato, talvez pelo fato de só se chegar lá a pé. Mas nessa hora tinha a vantagem do meu vizinho mais próximo ficar em outro município.
“Onde você mora agora?”, perguntou enquanto acendia o quarto cigarro na bituca do terceiro.
“No mesmo lugar”.
“E o que você tá fazendo indo pra marginal, Edu? Você acha que eu estou brincando? Pelo amor de Deus, vamos pra sua casa”.
Pelo tom de voz dela achei melhor ir para casa, a praia ficava pra outro dia.
“Foi só uma idéia que eu tive. Esquece”.
Era tudo uma questão de sorte. Pelo menos não tinha pago o uísque. Talvez tomando um quíntuplo quando chegasse em casa desse para empurrar a cômoda pra segurar a porta. Não que estivesse com medo, mas aquele tique no canto da boca tinha voltado.

oooOOOooo

Eu queria voltar pro tempo da escola. Os mais velhos. O Cleyton. Como amei aquele homem. Mas era um cachorro como os outros. Tinha vergonha de mim. Foi sempre assim. Era tudo escondido, depois da aula. Aí fingia que não me conhecia. Me xingava quando estava com os outros. Tirava sarro. Filho da puta também. Todo mundo é filho da puta. Só se salva minha mãezinha. Essa sempre me amou. Faz tudo por mim. Mas também mais ninguém. Todo mundo te rouba. Explora. Atira na sua cara que você é esquisito. Usa e depois joga fora.

oooOOOooo

Parei o carro mais pra baixo na rua e caminhamos juntos até a porta do prédio. O saguão estava com uma lâmpada queimada e o porteiro dormia placidamente com a cabeça apoiada no balcão de fórmica. Era pago pra dormir, o desgraçado. Não acordaria se eu entrasse montado num elefante com dor de barriga.
“A televisão está quebrada”.
Achei que talvez ela pudesse querer ver um filme na TV. Não queria.
“Onde é o banheiro?” ela perguntou assim que entrou.
Foi tomar um banho. Dei uma toalha nova para ela. Com o tempo que as mulheres levam pra tomar um banho daria pra um sujeito empreendedor fazer muita coisa. Uma tese sobre isso talvez. Fiz um uísque. Estava na hora de pensar com mais vagar, ordenar as coisas, avaliar a situação e tomar as decisões calmamente. Ao invés disso, fiz o segundo uísque que se encaminhou rapidamente pelo caminho do primeiro. Fiquei pensando em todas as encrencas em que já tinha me metido por causa de mulher. Estava mais ou menos no meio da primeira encrenca que me veio a cabeça quando notei que o segundo uísque tinha sumido sem mais nem menos. Levantei pra fazer o terceiro e ela saiu do banheiro.
“Faz um pra mim”, ela pediu.
Sair não é a palavra. Ela veio do banheiro parecendo um primeiro prêmio de loteria. Assim que consegui recobrar o fôlego estendi o copo pra ela e fiz um outro pra mim.
“Posso te emprestar um abrigo de ginástica, se você quiser”.
Ela estava enrolada na toalha como um presente. Pensei no Zéfiro de novo.
“Qual é, Edu. Já fiquei assim com você um monte de vezes”.
“Nunca impunemente!”
“Não se meta a besta numa hora dessas”, ela disse agressiva. “Onde está o abrigo?”
“Vou pegar. Não está na hora de você me contar um pouco dessa história? Ando meio sem notícias do submundo”, falei, “Coisas assim como quem é aquele cara? Quando foi que você mudou de profissão e quem são aqueles seus amiguinhos da boate?”
Ela olhou pra mim com um olhar ao mesmo tempo curioso e bravo. Parecia estar na dúvida entre me matar na hora ou me torturar lentamente antes.
“Você está achando que eu virei puta, é?”
“Não é bem isso, é que nunca tinha visto você... como é que posso explicar, nunca tinha te visto tão ‘produzida’, é isso!” Enfatizei a palavra. Ela apertou o copo com força e franziu os olhos.
“Não começa a jogar as coisas!”, gritei, de súbito, me lembrando que ela era Campeã de Arremesso de Sólidos, modalidade para casais.
“Edu, eu estou trabalhando!”
‘É, eu notei. Paga bem?”
O álcool é a única droga que faz você dizer coisas que não queria dizer de jeito nenhum. Às vezes até as que não podia.
‘Escuta aqui, Edu. Não sei se te mando a merda ou se te conto a verdade. É uma história tão comprida”.
Ela me pareceu como uma criança que tivesse envelhecido de repente. Senti vontade de pegar ela no colo e protegê-la como um pai faria com uma filha. Eu sou um sentimental, sempre fui. Por outro lado, não tenho filhos. Resolvi deixar o colo para mais tarde.
“Se eu puder ajudar em alguma coisa. A última vez que eu recusei ajuda a alguém fui mal compreendido”, falei, com uma ironia tão sutil que passou desapercebida como um hindu de turbante no Viaduto do Chá.
“Falando sério. Estou fazendo um trabalho para o jornal. Acontece que eu achei que ia ser uma coisa e está sendo outra completamente diferente”.
Acomodei-me na poltrona embaixo da janela. O abajur na mesinha ao lado do sofá jogava sombras suaves na parede.
“Me conta do começo”, falei, e peguei um cigarro do maço no bolso da camisa.
“Primeiro me dê a carta”.
A carta! Havia me esquecido completamente dela! Botei a mão primeiro no bolso de trás da calça, mas logo em seguida me lembrei de ter colocado no bolso do casaco. Dei o envelope.
“Arre, que já estava mais do que na hora”. Abriu e retirou de dentro uma folha e leu devagar.
“Filho da puta, Edu. Custava ter me dado antes? Você quase estraga tudo. É do Edmar”.
“Como estraga tudo? Passei meses bolando um jeito original de te procurar e você diz isso. Você precisa ver o que eu planejei para o nosso próximo encontro”, disse para fazer uma gracinha.
“Depois você conta”, ela respondeu levando a sério. Mau sinal.
“Quem é o Edmar?”, perguntei e estendi a mão para ela me dar o papel.
“Espera. Deixa eu contar a história desde o começo”, ela falou enquanto colocava o papel de volta no envelope. “Se eu te mostrar isso agora você não vai entender nada”. Ficou um momento em silêncio, depois olhou para mim e continuou.
“Acontece o seguinte. O Edmilson que trabalha lá na expedição do jornal contou para o Raul...”.
“Quem é o Raul?”
“Meu editor”, me respondeu com cara de saco.
“Desculpe. Vai”.
“Bom, O Edmilson falou para o Raul que ele conhecia um travesti que tinha aids e estava passando pra todo mundo. Bom, no começo o Raul ficou achando que era loucura do moleque, mas depois achou que ele estava muito assustado e resolveu escarafunchar um pouco. Parece que o Edmilson tinha dado umas com um travesti chamado Shirley e que uns estudantes tinham feito um exame de sangue em um monte de travestis e que esse Shirley tinha tido um positivo. Parece que a bicha enlouqueceu. Saiu do treme-treme onde morava e sumiu no mundo. Umas duas semanas depois ele telefonou para o Edmilson e contou a história. Até aí nada. O problema é que ele falou também que não ia morrer sozinho e que ia passar pra todo mundo”.
“E o Edmilson como é que está? Já fez o teste?” Perguntei.
“Já. Deu negativo. Mas isso não quer dizer nada porque parece que o corpo leva pelo menos uns quatro meses pra fabricar o anticorpo”.
“Nunca ouvi falar nisso”, falei sério.
“Você também nunca se interessou muito em saber pelo jeito”, ela respondeu meio incisiva.
“Tá legal. Continua”.
“Quando o Raul me contou a história eu tive a idéia de fazer uma entrevista com o tal do travesti. Primeiro porque eu sempre achei que devia ser muito pirante a cabeça de uma pessoa pra ela virar travesti, depois porque esse negócio da aids está mexendo com todo mundo e eu achei que a entrevista ia ser uma coisa putamente interessante, ia mexer com os órgãos de saúde do governo, com a atitude das pessoas em relação à prostituição, em relação aos travestis, com o medo da aids, essa coisa toda”.
“Lógico. E daí? O que é que isso tem a ver com você estar trabalhando de puta numa boate? Resolveu fazer laboratório antes?” A piada passou desapercebida.
“Tem tudo a ver. O único jeito de eu achar esse cara era através de uma menina que trabalha na boate. Parece que ela é da mesma cidade dele, sei lá. O que eu sei é que ela é a única pessoa no mundo em quem ele confia. Aí eu falei com o Edmar, que é repórter de policia lá no jornal, se ele conhecia alguém que pudesse me apresentar a ela. Ele conhecia. O Edmar conhece todo mundo. Ele lembrou que tinha uma amiga que trabalhava na boca que podia me apresentar”.
“Você não podia ser apresentada durante o dia?” Eu disse para falar alguma coisa e forçar a barra.
“Podia. Mas eu tive a esperança de que me vendo ali ela poderia resolver me levar ao lugar onde ele faz ponto na hora. De mais a mais, esses seus comentariozinhos já estão começando a me irritar. Puta não se veste assim como eu estou. Eu só não quis destoar muito”.
Ela soava magoada.
“Não está destoando nada”, eu disse com uma voz inocente. “Você estava perfeita”.
“Para Edu, porra! Deixa eu continuar. O Edmar me apresentou para uma tal de Kátia que me levou na boate. Ela me contou que a amiga de Shirley chamava-se Jussara e que sempre aparecia por lá a noite”.
“Isso foi hoje?”
“Não. Ontem. Eu contei para a Jussara mais ou menos o que eu queria fazer, sem falar no Edmilson, que eu não queria arrumar encrenca para ele, e ela me disse que ia falar com a Shirley e me daria uma resposta hoje.”
“E a carta?”, perguntei.
“Calma eu já chego lá”. Hoje de tarde o Edmar vem até minha mesa e diz que acha que falou besteira com uns amigos informantes que ele tem. Como assim, besteira? Perguntei para ele. Ele disse que tinha mencionado que eu ia fazer uma reportagem assim e assim e que acabou falando mais do que devia. Avisou que era para eu ficar atenta porque a polícia poderia querer saber de mim onde encontrar o tal do travesti”.
“Mas se você não sabia, como é que podia contar pra eles?”, perguntei num impulso.
“É, mas a polícia não sabe disso, ou então não acreditou no Edmar. De qualquer forma, para que eles vão trabalhar se a trouxa aqui puder fazer o serviço pra eles?”
“Eles chegaram em você?”
“Quase. E por sua culpa. A carta que você tanto quer saber o que diz, era um bilhete do Edmar dizendo que uns investigadores já sabem do meu encontro de hoje, sabe Deus como, e que estavam vindo atrás de mim na boate. Se você não tivesse feito tanta onda eu podia ter saído antes de eles chegarem”.
Ela soava dura agora.
“Espera um pouco, Karen. Como que eu ia saber. Você não quis falar nada. De qualquer jeito eu te tirei de lá, não tirei?”, falei, tentando me justificar. Desse jeito eu ainda ia acabar responsável pela difusão da Aids no Brasil.
“Tudo bem, vai, Edu. O fato é que a Jussara me passou o número de um telefone comunitário para eu ligar para o Shirley amanhã as nove da manhã em ponto”.
“Travesti não acorda a essa hora”, falei. É muito cedo”
“Como é que você sabe? Anda freqüentando algum?”, ela perguntou com um sorriso na voz.
“Não é isso”, respondi malcriado. “É que se eles trabalham de madrugada, devem dormir até tarde”.
“Brilhante, meu caro Watson”, ela falou me gozando. “Acontece que esse travesti está com a rotina um pouco alterada. Deve estar dobrando a jornada de trabalho”.
“Não fala assim. Seria horrível!”, e fiz uma cara devidamente horrorizada.
“É horrível de qualquer jeito. Esse é que é o charme da matéria”.
“Charme!?!”, e tentei parecer mais horrorizado ainda.
Ela estava obviamente cansada. Ainda estava embrulhada na toalha. Mas já não parecia mais um presente, parecia mais um passado. O que na verdade ela era. Pelo menos para mim. Eu tenho um amigo que diz que o passado é o melhor presente. Talvez. Essa conversa toda sobre travestis, polícia, aids... Estava me sentindo meio esquisito.
“E agora, o que você vai fazer?”, falei tentando dissipar o silêncio cansado que tinha se instalado na sala.
“Eu gostaria de dormir aqui. Acho que não seria uma boa idéia eu voltar pra casa com as coisas nesse pé. Tenho medo de eles aparecerem lá”.
O olhar dela ficou um pouco mais meigo.
“Dormir aqui ou dormir comigo”.
“Estou cansada, Edu”.
“E ainda dizem que a vida é fácil”, reclamei. “Você não podia ter escolhido uma reportagem mais calminha pra fazer, não”.
“Se não fosse por ela você não teria me encontrado”.
“Por falar nisso, quem é aquele cara que me deu a carta? Como foi que ele me achou?” Lembrei das ameaças dele. “Ainda preciso acertar umas coisinhas com esse cara”.
“Só pode ser o Edmar. Como ele te achou só Deus sabe”, ela falou pensativa. “Uma vez ele me viu com você no Supremo. No dia seguinte fez a maior gozação da redação. O gatinho da Karen, bar não é motel, essas coisas”.
“É, ele me abordou no Supremo. O Supremo... Bons tempos...!”
‘É...”.
Ficamos nos olhando. Ela tinha alguma coisa no olhar que eu não sabia o que era. Como se pensasse alguma coisa que nunca poderia contar pra mim. Uma ternura e um distanciamento ao mesmo tempo. Sempre tivera. Nunca entendi muito bem porque tínhamos terminado. Acho que nem ela.

oooOOOooo

É porque sou pobre, porque sou uma bicha. Eu sei. Se fosse rica era diferente. Não me tratavam feito lixo. Aqueles velhos podres me xingando na cama, implorando pra ser comidos. Depois me olham com nojo, quase jogam a grana na minha cara. Filhos de uma puta. Vou matar todos eles. Vou contaminar todos. Passar a praga. Eu vou, mas levo os filhos da puta comigo. Eles vão ver uma coisa. Vão mesmo. Estou cansada de levar porrada, de brigar na gilete, de não ter dinheiro. Agora não tem mais operação, não tem mais injeção. Só dar rabo e comer rabo até morrer, até matar todos aqueles finochios filhos de uma égua.

oooOOOooo

Acordei de manhã com o som dela no banheiro. Acho que as mulheres têm uma atração por banheiros. Levantei-me e fui até a cozinha. Dona Mafalda olhou para mim. O olhar dela era como um sermão da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo nos Santos Últimos Dias. Com ênfase nos Últimos Dias. Tomei um copo d’água tentando fazer de conta que estava sozinho.
“Que horas são?”
A voz de Karen veio do banheiro como uma ducha fria. Lembrei-me da noite anterior. Inconscientemente procurei a garrafa de uísque com o olhar. Era muito cedo para isso.
“Oito e meia”, gritei de volta.
Ela ia querer telefonar do apartamento. E depois? Será que ela ia querer que eu fosse com ela? Eu ia ter que ter uma boa desculpa se fosse pra faltar na agência. Ela apareceu na cozinha com o meu abrigo e com o cabelo enrolado numa toalha. Dona Mafalda olhou para ela de baixo pra cima, disse hmm, voltou-se e fingiu ir fazer qualquer coisa na área.
“Você me empresta o abrigo?”, sussurrou com um olhar maroto. “Eu não podia por a roupa de ontem”.
“Tudo bem”. Sorri pra ela. “Você quer café?”
“Quero”.
De repente estava muito gostoso estar com ela na cozinha, de manhã, usando meu abrigo e sorrindo pra mim. Senti uma ternura enorme por ela, como se tivéssemos voltado aos nossos primeiros tempos.
“Posso telefonar pra o Shirley daqui?”, ela perguntou.
Não eram os primeiros tempos. Definitivamente. Não havia nenhum Shirley nos nossos primeiros tempos. Nem Aids.
“Claro. Pode usar. Já são nove horas?” Olhamos os dois para o relógio na parede da cozinha. Faltavam quinze.
“Bem, já já preciso começar a me arrumar para ir para a agência”, eu falei mudando meio rapidamente de assunto.
“Você não vai ficar comigo?”, ela perguntou indignada como se eu a estivesse abandonando depois de dez anos de casamento.
“Não é isso. É que eu tenho que trabalhar e...”, ela não me deixou continuar. Levantou da mesa e foi pra sala.
“Ser bunda mole é coisa de publicitário mesmo ou eles te pagam extra pra isso?” A voz parecia bem zangada.
“Não precisa ser estúpida. Quem precisa de coragem é você que escolheu ser repórter, não eu”, devolvi meio estúpido também.
“Eu escolhi ser repórter, não isca de polícia. Pô, Edu. Você bem que podia ficar comigo. Você vai sair daquela sua vidinha da agência pro bar, do bar pra casa. Você vai ver como é a vida fora das campanhas. Eu estou com medo de ficar nisso sozinha, o Edmar está manjado e pra você vai ser uma coisa nova, diferente”.
“Põe diferente nisso”, resmunguei de volta. “Tudo bem. Acho que dá pra inventar uma desculpa qualquer lá na agência, afinal, o pior que pode acontecer é eu ficar desempregado”, disse isso já com um sorriso nos lábios. Ela arregalou os olhos de repente.
“Que horas são?”
“Nove e cinco. Liga lá, senão o cara desiste e adeus reportagem”, falei meio urgente.
Ela levantou, pegou a bolsa na cadeira e voltou a sentar no sofá perto do telefone remexendo dentro da bolsa. Achou a carta na bolsa, colocou ao lado do telefone e começou a teclar o número.
Um tempo, Eu só ouvi o lado de cá da conversa.
“Alô. Quem Fala”.
“- “.
“Eu sou a Margô. A Jussara me disse pra te ligar”.
“- “.
“Como você quiser. Aonde você quer que eu vá?”
“- “.
“E onde fica isso?”
“- “.
“O.K. Já entendi. Eu conheço o lugar. A que horas?”
“- “.
“Não. Eu vou com um fotógrafo amigo meu. Limpeza”.
Ela desligou o aparelho e ficou quieta com olhar meio parado.
“E então...?”, perguntei.
Ela olhou lentamente para mim e disse:
“Está combinado. Daqui a uma hora e meia na casa da mãe dele. É no Ipiranga. Perto da saída da Imigrantes. Uma travessa da Ricardo Jafet. Eu falei que você era fotógrafo”.
“Só isso?”
“Só”.
Tomei um banho, me vesti e liguei para a agência. Disse que não estava me sentindo bem e não iria. Pelo menos não de manhã. De qualquer forma não menti. Não estava mesmo me sentindo muito bem com essa história toda. Ela ficou o tempo todo no mesmo lugar sem se mexer.
“Vamos?” falei, de pé no meio da sala. “Já são quinze pras dez”.
“Você não vai ser o fotógrafo, Edu?”, ela perguntou. “Cadê a máquina?”
“É verdade”, respondi e voltei para o quarto atrás da minha velha Pentax Spotmatic. Por sorte ainda tinha filme dentro.
“O.K., vamos”, se levantou meio sonada, passou por mim e foi em direção a porta. Liguei a secretária eletrônica, disse até logo pra dona Mafalda que resmungou qualquer coisa e saímos.

oooOOOooo

Minha mãezinha, tadinha. Não merecia. Ela não merecia. Mas agora é tarde, vou botar pra foder. Me disseram que estão atrás de mim. Não tenho medo de polícia. Não tenho medo de cara feia. Não tenho medo de ninguém. Se vierem me pegar, corto todo mundo na gilete. Me corto toda. Vai ser sangue pra todo lado. Vai morrer todo mundo com a boca cheia de formiga. Quero ver eles explicarem em casa que estão com a praga gay. Eles vão ver uma coisa. Eles que tentem.
Já devo ter passado pra uns vinte. Não precisa camisinha não, meu bem. Há há. Faz-me rir. Só queria ver a cara deles na hora de pegar o exame. Dava tudo pra ver a cara deles. Filhos da puta. Canalhas. Cachorros. Eu ponho devagarzinho, você vai adorar. Lindo. Agora você. Eles vão ver uma coisa. Tudo secando, descarnando, morrendo. É, meu bem, deve ter sido aquela bicha, aquele traveco. A vingança da boneca. É, meu bem, foi a boneca sim. Foi a boneca aqui que te matou. Eu mesma. Só tenho pena da minha mãezinha. Tadinha. Não merecia. Não merecia mesmo. Eles vão me pagar por isso. Ô se vão. Filhos da puta.

oooOOOooo

A relíquia da guerra do Paraguai estava no mesmo lugar. Estes carros têm o conforto de não serem roubados. O único risco é serem varridos pelo lixeiro. Comprei um Marlboro no bar em frente, gastei uns cinco minutos fazendo a jóia pegar e estávamos a caminho.
O dia estava claro, mas sem sol. Aquele claro cinzento de São Paulo. O trânsito estava com aquele ritmo um pouco mais acelerado das sextas-feiras com um pouco mais de ansiedade pelo fim-de-semana no rosto das pessoas. Não foi difícil encontrarmos a tal rua. Na quinta ou sexta tentativa conseguimos. Era uma rua de classe média baixa, com sua quota de bares de esquina, vendas, grades de alumínio altas fechando casas pequenas com portão com bunda para embutir um carro durante a noite. A casa que procurávamos ficava numa curva e era igual a muitas outras casas da rua. No quintal tinha um menino de uns quatro anos brincando e que correu pra dentro pra chamar a tal de Shirley quando perguntamos por ela. Fiquei imaginando que espécie de vida familiar aquele garoto teria. Como é que você explica um travesti na sua casa para os outros meninos da rua. Talvez eles nem pensassem nisso. Ou talvez fosse uma tragédia. Talvez a coisa mais comum do mundo. Sei lá. Uma senhora de uns sessenta anos veio abrir o portão.
“Vamos entrar. A Shirley está no banho, mas já está saindo”, ela falou isso enquanto fechava o portão de novo. Parecia estar falando sozinha. A voz era baixa como se não fizesse muita questão que ouvíssemos.
Entramos numa sala atravancada com uma mesa de jantar desproporcional ao lugar e um sofá verde e velho encostado na parede. Na parede em cima do sofá tinha um daqueles quadros redondos com a foto de um senhor e uma senhora super retocada que devia ter visto dias melhores. As outras coisas da sala eram uma mesinha de vidro com um três em um em cima e no outro canto meio enviesada em relação ao sofá, a inevitável televisão com uma toalhinha de renda embaixo da antena. A velha pediu licença e sumiu por uma porta com uma cortina dessas de caroços de madeira. Logo depois barulho de louça. Pelo menos ia ter um cafezinho.

oooOOOooo

Lixo. Eu não sou lixo. Mas parecia. A cara de nojo que fazem. Lixo são eles. Finóchios canalhas. Não agüentava mais. Se me pegarem me mato. Me mato na gilete. Eles vão ver como é bom ser lixo. Ser olhado com nojo. Emagrecendo, sumindo. Virando carniça em vida. Ninguém quer encostar em você. Te dar a mão. Filhos duma cadela. Todos eles. Lixos. Lixos. Lixos. É tudo um grande lixo. Mundo de merda. Lotado de filho da puta, de viados. Eles que não chegassem perto de mãezinha. Ah, não. De mãezinha não. Mato todo mundo antes. Mato mesmo. Juro. Os lixos.

oooOOOooo

“O travesti é o lixo do mundo! E agora vou esfregar esse lixo na cara deles”.
Olhei para o lugar de onde vinha a voz. Era um travesti sem a menor dúvida. Pescoço grosso demais para uma mulher. Pés grandes demais também. Afora isso ele era uma mulher linda, se é que posso falar assim. Estava parado na porta numa pose dramática. As mãos na cintura, os pés separados, uma calça de napa preta justa, uma blusa branca larga e meio transparente deixando óbvios um par de peitos enormes e eretos que fariam o orgulho de qualquer vendedor de silicone. No rosto uma expressão bonita, forte e um pouco atrevida, com o queixo meio levantado, desafiante.
“Escreve isso aí! Vou levar um monte de gente comigo! Quero ver todo mundo borrado de medo!”
Ele puxou uma cadeira da mesa, sentou, acendeu um cigarro, procurou um cinzeiro com os olhos, achou, levantou e foi buscar. Quando voltou virou-se para a Karen e perguntou:
“É o seu gatinho?” e fez um gesto com o cigarro na minha direção.
‘É, mais ou menos... Ele é fotógrafo lá no jornal”, ela disse.
“Essa aí é que é a máquina?”
Era a minha vez.
“É velha, mas é a que eu mais gosto”, respondi.
“Não têm importância. Eu não quero que tire fotografia mesmo. Parece que os homens estão atrás de mim. Parece que eu passei a vida com os homens atrás de mim”.
Achei melhor não achar graça, literalmente. Fiz cara de paciência, fazer o que. A Karen parecia meio sem jeito. Branco na sala. A mãe trouxe uma bandeja com três cafés. Nós tomamos o café em silêncio. Acendemos cigarros.
“Vocês querem ver o meu portfólio?”, perguntou e sumiu pela mesma porta por onde entrara. Voltou logo em seguida com uma pasta tipo portfolio preta.
Ele era artista. Quem não é artista nessa vida. Já tinha estado em shows na Argentina e no Paraguai. Fotos, artigos em jornais já meio amarelados, mais fotos com ele sempre como vedete de teatro de rebolado, uns programas de lugares com nomes estranhos, alguns cartazes em que o nome Shirley Lane aparecia no canto como show secundário de algum outro artista.
Enquanto mostrava, ele ia falando o que era uma coisa e o que era outra, e se sentia na voz dele toda uma carga emocional, provavelmente de sonhos acalentados durante muito tempo e que tinham sido frustrados. Havia ressentimento naquela voz.
Karen ia ouvindo e fazendo anotações num caderninho. De vez em quando fazia uma pergunta. Quando abordou o assunto principal com um sutil – e agora, como você está? Ele se exaltou imediatamente.
Destilou um ódio terrível conta tudo e contra todos. Desde a hipocrisia da classe média que vende uma imagem moralista e freqüenta esquinas escuras de madrugada até da polícia que como sanguessuga extorque dinheiro, dá porrada, leva em cana e que sempre está disposta a abrir um inquérito que não apura nada. O tempo todo dizia que queria contaminar todo mundo, que não iam se esquecer dele e que carregava uma gilete pra espirrar sangue em todo mundo se tentassem por a mão nele. O tempo todo ele gesticulava e andava pela sala, depois parava e olhava pra nós com olhos que pareciam pedra polida, atirando o rosto pra frente. E fumava, fumava muito. A Karen conduzia a conversa como podia. Às vezes amansando e às vezes dando corda. Estava tensa, mas segura de si. Eu estava começando a ficar parecido com o sofá: velho e verde.
Aí chegou a polícia.
Acho que fui o primeiro a prestar atenção nas sirenes. Eles estavam muito envolvidos para notar, mas quando foi ficando mais próximo, a Shirley se calou de repente. Virou um olhar de ódio para a Karen.
“Sua cadela! Você me dedou!”
“Eu não dedei ninguém, juro!” a Karen falou enquanto se levantava assustada da cadeira. “Tem algum jeito de sair daqui por trás da casa?”
“Eu vou matar vocês!”, ela gritou e correu para o quarto.
A Karen se aproximou de mim no sofá enquanto eu levantava pra tentar ver alguma coisa pela janela.
“Eu vou sujar todo mundo de sangue!” Ela já apareceu com o pulso cortado vindo na nossa direção. Eu meio de susto, meio por reflexo empurrei a mesa de centro com o pé, fechando a passagem dele ao lado da televisão. A velha estava estática na porta da cozinha. Parecia um desses totens de madeira com uma expressão de horror petrificada. O sangue escorria pela mão dele, pela calça e pingava no chão. Ele segurava a gilete na outra mão e sacudia o braço por cima da mesa. Ele chutou uma cadeira.
“Filhos da puta!!!”, gritou e tentou vir pelo outro lado. “Vocês vão ver!”
Segurei a Karen perto de mim. Ouvi o barulho do portão e alguém tentando abrir a porta. Estava trancada.
A Shirley subiu na mesa de centro e chegou até nós dois. Pancadas fortes na porta da frente. Estavam tentando arrombar. Shirley gritava e xingava a plenos pulmões. Karen subiu na mesa também e passou para o outro lado. Tentei segurar a Shirley sem encostar no sangue dela ao mesmo tempo. Com um gesto violento ela me empurrou e voltou para a passagem do corredor. Caí sentado no sofá.
A porta da frente estourou e abriu com violência.
“Quietos!”
Era um homem vestido com jeans, com mais ou menos trinta anos, que impunha um senhor respeito. Provavelmente devido ao fato de estar com um baita três-oitão apontado com as duas mãos. Ele foi entrando bem devagar. Atrás dele vieram outros três, igualmente armados. Pelo menos um deles era o mesmo que eu tinha visto na boate. Só um estava de terno.
Shirley enlouqueceu. Gritou, xingou, chutando tudo que estivesse no seu caminho enquanto corria de volta para o quarto. Dizia que ia passar aids pra tudo quanto é filho da puta e que ia morrer todo mundo. O primeiro homem, com o revolver em punho, foi atrás dele no quarto.
“Larga essa porra!”, ele falou seco.
“Vou te cortar, seu filho da puta, viado! Vem me pegar!”
“Larga essa gilete, porra, senão eu atiro...”. Ele não parecia estar brincando.
“Eu vou te cortar... você vai morrer!”, a Shirley gritou histérica.
Ouvimos um tiro e depois mais nada.
“Essa porra aí pega”, ele falou simplesmente quando entrou de volta na sala. “Acertei o cara. Esse aí não vai morrer de peste, não. Já era...”, ele falou sem se dirigir a ninguém em especial. Virou-se para um dos outros e disse: “Beto, manda vir o rabecão. Eu não sou louco de por a mão nisso aí”.
A velha ficou sumida num canto até a hora que levaram o filho pra fora, depois começou a chorar baixinho. Dava pra ver que não era a primeira vez que ela chorava por ele. Talvez nem fosse a última.
Fomos embora.
“Não fui eu que entreguei ele, Edu, te juro!”, Karen disse assim que bateu a porta do carro.
Passei o braço pelo ombro dela. “Eu sei. Já acabou. Tá tudo bem”.
Não estava, mas na verdade não era nada. Era só mais um dia. As putas, a polícia, os travestis, os ladrões, os informantes, a sujeira, as matérias pro jornal e as minhas campanhas. Era tudo parte da mesma porcaria. Era assim mesmo todo dia. Mundo de merda.
Deixamos o carro no estacionamento do jornal e andei com ela até a porta. Nos despedimos. Observei enquanto ela desaparecia no saguão do prédio.
Andei uns metros pela calçada, acendi um cigarro e fiquei pensando.
Que coisa louca que era a vida de algumas pessoas. Pensando bem, que aventura estranha e doida essa que eu tinha me metido. Achei que tinha aprendido alguma coisa, só não sabia muito bem o que. Talvez tivesse ficado com a casca mais dura, ou então estivesse ainda em estado de choque. Não dava para saber.
Cada uma que a Karen me arruma, pensei e suspirei fundo.
E se eu conhecia bem a Karen, essa não tinha sido nada, a próxima ia ser bem pior.