1/01/2008

Quadros de Família


Devia ser o décimo toque do telefone. Eles tocam no máximo vinte vezes até parar. E eu pago uma fortuna pra ter isso em casa, pensei. Atendi.
“Edu!”, era a voz da Karen.
Não devia ter atendido. Ninguém normal liga pra uma pessoa numa hora dessas.
“Que horas são?”, grunhi no telefone. Normalmente isso seria suficiente, mas como já disse, nenhuma pessoal normal etc, etc.
“Nove e meia”. Ela respondeu com uma voz condescendente, como se estivesse me fazendo um favor ao me acordar a essa hora.
“Eu fui dormir não faz nem quatro horas, Karen, pô...”, me lamentei com a minha melhor voz de travesseiro. “Não dá pra você me ligar mais tarde?”
“Não. Eu estou indo pra aí. Preciso falar com você”, disse e simplesmente desligou o telefone na minha cara, sem mais nem menos. Eu não atenderia a porta nem que ela estivesse vindo me oferecer um emprego! O que não era nada provável. A não ser que fosse no departamento de publicidade do jornal. Talvez fosse melhor abrir. De mais a mais ia ficar chato com os vizinhos, ela fazendo escândalo no corredor a essa hora da manhã.
Virei pro canto de novo. Dava pra dormir mais um pouco. Dona Mafalda devia estar fazendo um café. Prestei atenção. Não ouvi nenhuma Dona Mafalda. Com um sentimento fundo de perda eu me lembrei que era folga dela. A casa devia estar em ruínas. Não ia ter café. Teria que me levantar. Sentei na cama.
A minha cabeça estava pesada. Tentei me arrastar até o banheiro. Deviam ter usado minha cabeça ontem à noite para o ensaio de uma banda punk. Alguém tinha esquecido de levar embora o violino elétrico. Ele continuava nos meus ouvidos. A culpa é do álcool. Tinha que parar de beber. Tinha que parar de dormir tarde também. Mas se parasse de beber estaria com metade do caminho andado. Ou o dobro. Sei lá. Abri o chuveiro. Um banho. Um banho e meio litro de Coca-cola. E dois Ormigren. Isso!
Depois do banho, da Coca-cola e dos comprimidos me senti um pouquinho melhor. Os comprimidos estavam muito brancos. Faziam doer à cabeça. Talvez os laboratórios fizessem de propósito, pra realçar o efeito do remédio. Fiz um café e tomei uma chícara. Karen devia chegar a qualquer momento.
A campainha soou como uma trombeta anunciando o dia do Juízo Final. Uma coisa infernal.
“Isso é hora de ficar dormindo?”, ela metralhou enquanto me jogava o jornal no peito. “Olha a sua cara, Edu. Você já se viu no espelho hoje?”
“Eu não me lembro de ter te contratado como meu sargento”, rosnei pra ela enquanto fechava a porta.
“O problema é o seguinte...”, ela começou.
Não era emprego.
“Karen, por favor, me dá um tempo”, falei enquanto desabava no sofá, “eu não dormi quase nada, por que a gente não se vê à noite. Você sabe que a minha cabeça só funciona depois da uma da tarde”.
“Você não está desempregado?”, ela perguntou pondo as mãos na cintura e olhando firme pra mim. Me lembrei do seriado Combate com o Vic Morrow. Ela parecia o Vic Morrow daquele jeito.
“Justamente”, devolvi meio irritado, “ou você acha que eu chego no emprego com essa cara quando estou trabalhando?”
“Eu achei que era por isso que eles tinham te mandado embora. Não foi?”, ela disse isso e sentou na poltrona de frente pra mim. “É que eu estou com um problema, Edu. E não sei como resolver?.
De repente ela me pareceu desanimada, cansada.
“Karen, falando sério agora. Quando que você não têm problema? Por que sempre o problema vem pra mim? Você quer o que? Começar uma epidemia? Agora eu entendi! Já que eu tenho um monte de problemas, eu devo ter um baita know-how em resolver problemas, certo?”, falei meio de saco cheio.
Ela ficou muda. Só olhou pra mim com aqueles olhos de cachorro na chuva. Depois apertou os olhos e fixou em mim com ódio. Usou todo seu arsenal mais um ou dois olhares novos pra mim. Não me impressionei. Estava muito ocupado pensando se teria energias pra empurrar ela até a porta. O dia não estava começando nada bem.
“Você vai ou não vai me ouvir?”. A voz saiu surpreendentemente calma.
“Vou. Que jeito?” Era sempre assim. Depois da troca ritual de insultos, começávamos a nos dar bem. “Qual é o problema?”
“O problema é que eu acho que estão querendo me transferir para a seção de polícia do jornal”, ela disse, “estou com um caso muito estranho na mão”.
“Por que você não faz como eu?”, perguntei. “Sai do emprego e resolve todos os seus problemas”.
Ela não prestou muita atenção em mim.
“O pai de um político daqui de São Paulo foi encontrado morto com dois tiros num apartamento na Praça 14 Bis. O jornal teria dado a notícia com algum destaque, sem dúvida, mas houve pressões para que não se publicasse nada a respeito para não atrapalhar as investigações da polícia”.
“Isso não é normal quando envolve gente importante?”, falei olhando para as manchetes do jornal meio de lado.
“De certa forma é”, ela concordou, “mas não sei por que o Raul achou que tinha coisa nisso e me pediu para ver o que conseguia descobrir. Ele tem faro pra essas coisas”.
“E você descobriu o que?” Olhei para ela esperando a bomba.
“Descobri que o pai e o filho se odiavam!”, ela respondeu com uma cara de satisfação que logo murchou.
“Qual político?”, perguntei.
“Paulo Parente”, ela disse, “mas você não vai comentar isso com ninguém, promete?”
“Não, não vou comentar, fica tranqüila”, falei para acalma-la. “O Paulo Parente!!! Ele é candidato a prefeito!”
“Mais um motivo para ele não querer que mexam nisso agora”, ela falou.
“Você acha que ele matou o próprio pai?”, perguntei admirado. “Ele é de direita, está certo, mas daí até matar o próprio pai vai uma certa distância”.
“É lógico, Edu. Quem matou foi outra pessoa. Mas acho que esse ódio de família pode ter alguma relação com o caso”, ela falou.
“O.K. Conta essa história do começo”, disse, sentando melhor no sofá. “Como foi o crime?”
Eu já tinha ficado interessado. É sempre assim. As encrencas na minha vida vinham sempre atraentes como cervejas no verão.
“Parece que o pai do Paulo, que era dentista, chegou nesse prédio da 14 bis devia ser umas nove horas da noite. Ele veio acompanhado de dois homens e subiu para ao apto. 702 de um tal de Seu Nonato. Quem me contou isso foi o porteiro da noite. Uma hora depois, mais ou menos, o sujeito do apartamento do lado, ligou para a portaria para avisar que estava havendo uma briga no vizinho. O porteiro subiu, encontrou a porta do apartamento aberta e o pai do Paulo caído no tapete”.
“Como se chama o pai do Paulo?”
“Rafael da Silva Parente”.
“E os outros?”, perguntei quando vi que ela tinha ficado quieta.
“Não tinha mais ninguém no apartamento”, ela disse meio devagar.
“Esse Nonato morava sozinho?”
”Não. Ele morava com dois filhos pequenos. O porteiro disse que ele é viúvo“.
Ela estava com uma expressão pensativa. Olhou através de mim e disse: “Tem alguma coisa de muito esquisito nisso tudo”.
“Põe esquisito nisso”, eu disse, “isso é tudo que você sabe?”
“É”.
“E o que é que você vai fazer agora?”
“Eu quero descobrir essa história”. Fez uma pausa. “Você quer me ajudar?”
“Ajudar como?”, perguntei surpreso. “Pensei que eu já estava ajudando o suficiente te economizando a grana no analista”.
“Sem brincadeira, Edu. Você está desempregado e vai acabar se matando de tanto beber e dormir. Pra você seria uma coisa útil, você ia aprender um monte de coisas sobre os bastidores do poder. Além disso, ia dar uma força pra mim”, ela falou isso com a cara mais meiga do mundo.
“Se eu me matar de beber, pelo menos vai ser suicídio”, eu falei ofendido, “e não assassinato num caso político”.
“Também não precisa exagerar”. Ela parecia invocada. “Você bem que podia largar de ser frouxo e me dar uma mão. É chato ir aos lugares sozinha. Nós dois pelo menos vamos conversando, trocando umas idéias, é gostoso!”
“Eu tenho medo é de sair perdendo na troca”.
“Tá legal, Edu. Esquece!” Agora ela parecia realmente brava.
“Tudo bem, tudo bem. Não precisa virar uma inimiga só por causa disso”. Eu já tinha resolvido ajudar. “Deixa eu por uma roupa, depois faço o que você quiser”.
Aquele sorrisinho de quem já sabia que ia conseguir o que queria me deixou meio irritado. O que a canalha queria era um chofer. Eu tinha arrumado a única coisa neste mundo que é pior que desemprego: trabalhar de graça. É sina.
Vesti uma calça jeans, uma camiseta branca e tênis. Desse jeito eu não chamaria a atenção nem que fosse o Rockfeller. Quando voltei pra sala ela estava na cozinha cantarolando baixinho. Devia ter bons motivos.
“E agora?”, eu perguntei. “O que vamos fazer?”
Ela gritou de volta da cozinha ”Vamos descobrir quem é esse tal de Nonato. Acho que se começarmos por ele vai chamar menos atenção do que começar a fuçar a vida do pai do Paulo”. Parecia fácil.
“E como vamos descobrir isso?”
Ela voltou pra sala trazendo um copo com café numa mão e um pão de forma com manteiga no outro. “Você já comeu?”, ela perguntou enquanto dava uma mordida no pão. “Se você quiser faço um pra você”.
“Já tomei um café, obrigado”, falei sentando de novo no sofá.
“Podemos descobrir onde ele trabalha e continuar a partir daí”, ela disse sentando na poltrona de volta.
“E como vamos descobrir isso?”
“Ele tem nome, não têm? A gente pergunta por aí”. Deu um gole no café.
“E como ele chama?”
“Nonato Bataglia. Filho de italiano”, ela respondeu, “e trabalha numa repartição pública”.
“Qual repartição?”
“Parece que na Secretaria da Saúde”.
“Hmm”, fiz em falta de coisa melhor a dizer.
Ela terminou o café. Levou as coisas pra cozinha, parou na porta e perguntou: “Vamos?”
“Vamos”, respondi. “Você sempre me enfia numas histórias absurdas”. Levantei, peguei as chaves e liguei a secretária eletrônica. “Tô pronto”, eu disse e fui pra porta. Ela estava parada no meio da sala olhando pra mim divertida.
“Você gosta de resmungar, né Edu?”, ela disse pegando a bolsa e vindo em direção a porta. “Acho que você não seria você sem uma reclamadinha”.
“Com os amigos que eu tenho, não admira”, falei e abri a porta pra ela passar. Ela me deu uma beliscada na barriga quando passou que me fez encolher. Enquanto ela chamava o elevador eu tranquei a porta.
Fomos até a redação enfrentando um festival de xingos e fechadas no trânsito. As pessoas estavam sempre insatisfeitas com a performance daquele fusca meia-sete no trânsito. Ele já não era grande coisa por si só, mas comigo na direção a química parecia ficar perfeita. Formávamos um teste perfeito para um estudo sobre a paciência média dos motoristas da cidade. Dirigir o carro da Karen era uma lição de humildade. Fiquei esperando no carro enquanto ela foi buscar qualquer coisa na redação. O dia estava quente e as pessoas pareciam estar andando mais devagar por causa do calor. Folheei um jornal velho que encontrei no banco de trás, fumei um cigarro, olhei o movimento na rua, li mais um pouco. Saí do carro, atravessei a rua, entrei num bar do outro lado. Pedi um Marlboro e um café. Estava terminando o café quando vi Karen saindo do prédio. Peguei e atravessei a rua em direção a ela.
“E aí”, perguntei “o que vamos fazer agora?”
“O Raul conhece um cara que trabalha no Serpro que pode nos dar alguma informação sobre esse tal de Nonato”.
“É no Ibirapuera”, ela disse enquanto entrava no carro.
Vinte emocionantes minutos de aventura no trânsito depois, chegamos ao parque. O tal sujeito amigo do Raul não estava. Voltava logo. Funcionário público nunca está, sempre já vem. Uns minutos depois, um sujeito magro com cabelos escorridos, de mais ou menos uns cinqüenta anos se aproximou de nós e perguntou: “Vocês estão me procurando?”
“O senhor é o Jurandir?”, a Karen perguntou.
“Sou eu mesmo”.
Karen explicou quem nos dera o nome dele e o que queríamos. Ele disse que iria consultar o computador e que se esperássemos um pouco poderia nos conseguir os dados que procurávamos. Ficamos de voltar logo. Uma meia hora de cerveja depois voltamos e ele nos informou que o Nonato estava lotado numa repartição da Secretaria da Saúde na Avenida Tiradentes. Era Encarregado de Setor.
Agradecemos muito e saímos. Uma vez lá fora, virei pra Karen e perguntei: “Você acha que nós vamos achar esse Nonato na repartição?”
“É lógico que não, Edu”, ela respondeu meio ríspida, “mas podemos falar com alguém que conheça ele. Alguém que possa jogar um pouco de luz na história”.
“É tudo muito estranho”, falei pensativo. “Quem eram os caras que estavam com o pai do Paulo? Onde foram parar o Nonato e as crianças? O que é que o pai do Paulo queria com ele e por que ele matou o cara? De quem era o revolver?”
“A única coisa que eu sei de todas as que você falou aí é sobre a arma”, ela me respondeu.
“O que tem ela?”
“Estava em nome de Rafael da Silva Parente”, ela falou com um ar misterioso.
“Você acha que foi suicídio?”, perguntei incrédulo.
“Edu, você já viu alguém se suicidar com dois tiros?”, ela perguntou de volta com um olhar de gozação.
“Deixa pra lá, vai”, falei, me sentindo meio idiota.
Entramos no carro e fomos pra cidade. No caminho paramos para almoçar no Galeto’s. As pessoas que estavam sentadas no balcão não poderiam imaginar que estávamos envolvidos na solução de um crime. Pareciam pessoas normais. Dessas que acordam de manhã, tem emprego, prestação e dores de cabeça. Dessas pra quem assassinato é assunto pra se ver no jornal da TV comendo pizza e bebendo Coca-Cola.
Chegamos na repartição devia ser uma e pouco da tarde. Não tinha muita gente. Passamos para o outro lado do balcão e vimos uma porta onde estava escrito. “Expedição”. Ouvimos barulho de pessoas do outro lado de uma divisória. Karen olhou pra mim e pôs o indicador nos lábios. Fiquei apreensivo. Ela abriu lentamente a porta e entrou. Achei melhor entrar atrás dela. Ela fechou a porta atrás de mim e sussurrou: “Vamos aproveitar que não tem ninguém e xeretar”.
“Xeretar o que?”, murmurei de volta meio alarmado.
“Sei lá, Edu! Xeretar é xeretar”, e foi para trás da mesa. A sala era pouco mobiliada. Tinha um arquivo de aço verde num dos cantos, um calendário de cortesia de uma papelaria numa das paredes e um crucifixo atrás da mesa onde a Karen estava muito ocupada olhando uma gaveta. Em cima da mesa tinha um mata-borrão desses que tem papel para rabiscar, um grampeador, uma dessas caixas beliche de entrada e saída cheia de papéis e um porta-retrato. Dei a volta na mesa até ficar ao lado de Karen que parecia ocupada olhando uns papeis que tinha achado na gaveta, e olhei a fotografia. Era de uma mulher e duas crianças num gramado. No canto inferior direito estava escrito: - Com amor, Lena.
Karen virou pra mim com um papel na mão e um olhar de triunfo e disse: “Demos sorte, Edu, essa é a sala dele!”
Olhei para o papel e vi o nome dele. “Isso não querer dizer nada”, falei, “ele pode ter mandado esse papel para o dono da sala, afinal ele trabalha aqui”. A Karen me mostrou um carimbo que estava na outra mão em que estava escrito de trás pra frente: - Nonato Bataglia, Expedição, Encarregado de Setor.
“Então eu já sei o nome da mulher dele”, falei e apontei o porta-retrato para ela. Ela praticamente pulou sobre ele, leu o que estava escrito e imediatamente abriu a moldura e tirou a fotografia de dentro.
“Vamos sair daqui rápido!”, ela falou e se dirigiu pra porta.
“Você vai levar a foto?!”
“Lógico! Shhh!”, ela fez um gesto com a mão para eu ficar quieto. Abriu bem devagar e fez um sinal para eu ir atrás rápido. Ninguém nos viu sair.
Ela andou depressa até o caro sem falar nada. Quando entramos no carro eu falei: “você está louca, Karen, isso é roubo!”
“Larga a mão de ser ingênuo, Edu”, e tirou a foto da bolsa. “Olha o que está escrito aqui atrás”, e me estendeu a foto.
Estava escrito: Araraquara, setembro de 97.
“Vamos para Araraquara”, ela disse num tom definitivo, “ele pode ter fugido pra lá!”
“Com esse carro não vai dar”, eu falei, “ainda mais a noite. São mais de cinco horas de viagem até lá!”
“Podemos ir de trem. O jornal paga”.
“É. A gente pega um trem ao redor da meia-noite e chega lá de manhãzinha”.
“E o que a gente faz lá?”
“Descobre onde o cara mora e vamos ver se ele está em casa. Simples”.
“Como?”, perguntei de impulso, sem pensar antes. Isso já estava se tornando um hábito.
“Pela lista telefônica, Edu! Ou então pelo cadastro da prefeitura, ou alguém da família, ou sei lá!”, ela disparou. “Você não consegue pensar sozinho, por acaso?”
“Não precisa falar assim, também. Eu estava muito bem na minha casa sozinho, sem ter que pensar em nada”, lasquei de volta.
Tá legal, desculpe”. Pelo menos agora ela soava arrependida. “Vamos pra sua casa e de lá a gente descobre o horário dos trens.
Fomos. O ar estava com cheiro de monóxido de carbono, asfalto quente e churrasquinho de gato. O trânsito já começava a engrossar. Só consegui uma vaga na Alameda Campinas, a dois quarteirões de casa. Parecia que fazia séculos que tínhamos saído de casa. O apartamento continuava em ruínas.
Mais tarde pedi uma pizza. O trem saia à meia-noite e vinte da Estação da Luz. Comemos assistindo os jornais da TV. Nenhuma notícia do assassinato. Depois ficamos olhando a foto. A mulher devia ter uns vinte e sete, vinte e oito anos. Era bonita. Os cabelos eram castanho-claros e a boca grande sorria com dentes perfeitos. O corpo era bem feito, desses que enganam a gente quando estão vestidos. Uma falsa magra. Os meninos eram obviamente gêmeos e filhos dela. O mesmo cabelo e a mesma boca. Olhavam sérios para a câmera. Deviam ter no máximo uns seis anos.
“Se ele é viúvo”, ela falou, “essa mulher morreu. E recentemente. É por isso que os filhos deviam estar com ele”.
“Isso se não estivessem com a avó ou a tia, ou qualquer coisa assim”, eu falei.
“Então, a probabilidade de eles estarem em Araraquara é grande”, ela falou. “Gostaria de saber como ela morreu”.
“Tenho um pressentimento que amanhã vamos descobrir todas essas coisas”, falei. “Quanto tempo vamos ficar lá, você têm idéia?”
“Acho que no máximo passamos o dia e voltamos a noite”.
“Devo levar alguma coisa?”
O olhar que ela me deu foi suficiente como resposta. Tomei um banho, troquei de roupa e saímos para passar na casa dela para ela fazer o mesmo. A meia-noite em ponto estávamos na estação.
Compramos passagens. Cabine com leito. Compramos bolachas e duas revistas. Embarcamos.
O trem era daqueles prateados da antiga Companhia Paulista e estava em razoável estado de conservação. O que não estava bem conservado era o povo do trem. Gente cheia de bagagem. Badulaques, crianças e vozes estridentes. Só pobre viaja de trem. A maior riqueza do Brasil são os pobres. Como tem pobre nessa terra! A cabine era boa, os lençóis eram limpos, embora parecessem estar em uso desde a inauguração da linha, e os leitos eram um em cima do outro. Não era o ideal para um casal romântico. Bem... Não éramos mesmo um casal romântico.
Tomamos um uísque no vagão restaurante e fomos para a cabine. Eu, é claro, no beliche de cima. O balanço do trem estava bom. Dormi.
O dia estava amanhecendo quando o trem entrou na estação de Araraquara. Tínhamos acordado um pouco antes com as batidas na porta do encarregado do vagão-leito. Sentia-me como se tivesse dormido dentro de uma máquina de lavar. Descemos junto com uma dezena de outras pessoas que rapidamente sumiram enquanto procurávamos uma lista telefônica. A estação era antiga, mas não muito. Era simples, de tijolos vermelhos aparentes com alguns bancos para sentar enquanto se espera. Não era grande. Não estava muito limpa também.
A Karen parecia refrescada como uma folha de alface. Olhei-me de relance num espelho e vi um sujeito com barba por fazer e um olhar fundo. Parecia pão de ontem, duro e velho. A Karen sumiu por uma porta. Fui atrás. Ela estava sentada num banco de madeira folheando uma lista telefônica atentamente.
“Achei, Edu!”, ela exclamou, “Está aqui, Bataglia, Nonato R., Rua Carlos Gomes, 285. Só pode ser ele”.
“Ótimo”, falei, “como vamos fazer para chegar lá, tomar um táxi?”
“Melhor não, Edu. Vamos andando mesmo. A cidade é pequena”.
“Andando!?!”, falei com horror, “Eu detesto fazer ginástica, meu negócio é trabalho intelectual”.
“É mesmo nisso você não é muito atlético”, ela gozou e levantou do banco. “Deixa de frescura e vamos, Edu”.
Saímos. A cidade era igual a todas as outras cidades do interior. Carros novos, caras modorrentas, todas as ruas de mão única e muitas lombadas. Não foi difícil achar a tal da Rua Carlos Gomes. Não ficava muito distante do centro, mas já era um bairro residencial. Não tinha nada de especial, somente botecos e casas. O número 285 era uma casa pequena com janela dando pra rua e uma varanda do lado direito dando vista para um quintal pequeno. As paredes estavam descascadas e a pintura anterior, de um verde claro, combinada com o bege da última pintura. No canto do telhado tinha um ninho de marimbondo. Tocamos a campainha. Não tinha cachorro. Se tivesse alguém na casa, devia estar dormindo. Tocamos de novo.Sem resposta. Se estivesse dormindo tinha o sono pesado. Acho que assassino dorme bem. A Karen empurrou o portãozinho que dava para o quintal e se esgueirou lentamente para dentro. Olhei para os lados, não vi ninguém na rua e entrei atrás tendo o cuidado de fechar o portão atrás de mim. Ela subiu os degraus que levavam até a varanda e bateu com os nós dos dedos na porta da casa. A porta estava fechada só no trinco. A Karen abriu e começou a empurrar a porta devagarzinho.
“Karen!”, eu falei alarmado. “Você está louca?”
Ela agitou a mão pra eu ficar quieto e ir atrás dela. Eu estava começando a desconfiar que esse é que era o meu problema. Eu ia demais atrás dela.
A sala estava escura e era dessas com o pé direto alto. Tinha um sofá e duas poltronas de napa marrom, uma mesinha de centro com os pés torneados de madeira e tampo de vidro, uma televisão, uma estante pequena com umas vaquinhas de cerâmica, um vaso de cristal avermelhado com umas flores de plástico e dois cinzeiros. Tudo menos livros. Ao lado do sofá um revisteiro. Na outra metade da sala tinha uma mesa de jantar com seis cadeiras e atrás das cadeiras do outro lado da mesa um par de sapatos pretos com as pontas viradas pra baixo. Havia pés dentro dos sapatos.
O homem estava de bruços, imóvel.
Olhei para a Karen e de volta para os sapatos. Ela seguiu meu olhar até os sapatos. Ela foi rapidamente até atrás da mesa e se abaixou.
“Ele está morto, Edu”, ela sussurrou, “acho que é o Nonato”,
“Ih, cacete!”, falei passando a mão no cabelo. “O que é que a gente vai fazer agora?”
Ela tirou uma carteira do bolso dele, olhou dentro e disse: “É ele mesmo. Vou dar uma olhada na casa e depois vamos sair daqui. Não põe a mão em nada”.
“E se viram à gente entrar aqui?”, eu disse. “Vão achar que nós é que matamos ele”.
Fui meio devagar pra perto do corpo pra olhar. Não dava para ver com detalhes por causa da penumbra, graças a Deus, mas parecia que tinham dado um tiro na cara dele. Tinha uma poça escura no chão em volta da cabeça. Tive que fazer força pra não vomitar.
A Karen continuava remexendo nos bolso dele como se fossem gavetas de uma mesa, sem a menor cerimônia. Comecei a ficar com medo.
“Vamos sair daqui logo antes que chegue alguém, Karen, pelo amor de Deus!”
“Calma, Edu, quero ver se descubro alguma coisa”. Ela estava com um envelope na mão. “Achei uma carta aqui”.
“Vamos logo!”, insisti, “já já vem à polícia e a gente está ferrado”.
“Que polícia o que, Edu”, ela falou ríspida. “Eles vão levar uma semana só pra começar a sentir o cheiro disso aqui”. Ela levantou e sumiu em direção aos quartos. Fui para perto da estante tentar fingir que não estava acontecendo nada. Não consegui. Ficava olhando sem parar dos sapatos do morto pras vaquinhas na estante. Sempre detestei vaquinha de cerâmica.
“O.K.”, ela disse quando voltou para a sala, “vamos sair de fininho. Faz de conta que não está acontecendo nada”.
“Claro. Afinal é só um cadáver”, falei tentando manter o astral alto, “se pegarem a gente pelo menos eu não vou ter que procurar emprego pelos próximos quinze anos”.
“Ninguém vai pegar a gente, Edu!”, ela falou pondo a mão no meu ombro. “Não seja apavorado que é pior”.
Não tinha ninguém na rua. Saímos e fomos andando até a esquina. Passou um carro na transversal. O motorista nem olhou pra gente.
“E agora?”, perguntei.
“E agora a gente volta pra São Paulo, o que mais?”
“E se não tiver trem há essa hora?”
“A gente volta de ônibus”, ela disse, “deve ter a toda hora”.
Fomos andando até a rodoviária. Parecia uma cidade fantasma, sem viva alma na rua. Ainda era muito cedo. Eu conseguia ouvir nossos passos na calçada. O corpo estendido atrás da mesa não me saía da cabeça.
“Quanto a bebida eu não sei”, falei pra Karen, “mas meu problema de dormir demais acho que está resolvido. Nunca mais vou conseguir fechar o olho sem ver aquele cara morto no meio da sala”.
“Não seja mórbido, Edu”, ela disse meiga, olhando pra mim, “logo mais a gente esquece”.
“Claro, claro. Um morto a mais, um morto a menos, que diferença faz”. Me sentia como se tivesse tomado uma pedra de café da manhã.
A rodoviária parecia um aeroporto. Devia ser o orgulho da cidade. Compramos as passagens e em quinze minutos estávamos instalados no ônibus. Assim que o ônibus entrou na estrada me deu uma vontade enorme de ir ao banheiro.
“Você trouxe a carta!”, falei surpreso quando a vi tirando o envelope da bolsa.
“Claro”, ela disse, “você acha que eu ia deixar lá?”
Ela começou a ler a carta em silêncio. O sol estava entrando pela janela. O ônibus estava meio vazio e sujo. No outro lado do ônibus, uma fileira pra frente da nossa, tinha uma menina vestida no consagrado estilo mamãe-eu-quero-ser-puta. Sentada do lado dela uma velha gorda que devia ser a própria. A própria mãe, digo. Mais na frente eu só conseguia ver um braço e uma cabeça de dois homens que conversavam alto o suficiente para serem ouvidos, mas não para serem entendidos. O motorista era um crioulo brilhante com óculos de piloto de helicóptero. Devia ser por influência da rodoviária, pelo menos tinha cara de competente. Acendi um cigarro e fechei os olhos. A imagem do sujeito emborcado no chão me veio imediatamente. Abri os olhos. A Karen estava segurando a carta com a mão apoiada na perna. Ela estava olhando pela janela.
“O que é que têm na carta?”, perguntei.
“Tem um monte de coisas”, ela respondeu. “A Lena se separou do Nonato e ele ficou com as crianças”.
“De quem é a carta?”
“É dela, Edu!”, ela falou impaciente. “Eu não estou te contando?”
Fingi que não era comigo e tentei outra: “De quando é a carta?”
“É de março. Deixa eu falar. Na carta ela fala que sente saudades das crianças e que não é justo que ele não deixe as crianças verem ela e que já tratou advogado pra conseguir isso na justiça”.
“Mas ela não morreu?”, interrompi.
“Lógico que ela não morreu, Edu?”, ela disse com a voz de saco. “Você acha que ele psicografou a carta? Para de fazer perguntas idiotas!”
“Lá vem você com patada de novo”, falei bravo.
“Desculpe, Edu, é que estou tentando achar um novo nexo em tudo isso”.
“Quem disse que ele era viúvo?”
“O porteiro do prédio dele”.
“O Nonato podia estar escondendo alguma coisa”, falei.
“É mesmo. Ele pode ter inventado esse negócio de viúvo.”
“Só pode ser. O pai do Paulo devia ser amante dela. Ele foi atrás do Nonato para matar ele e acabou sendo morto”, falei tentando entender esse embrulho de quem matou quem. “Mas por que o pai do Paulo faria isso?”
“Sei lá. Precisamos descobrir se foi isso, e se foi, por que”, ela disse depois de pensar um pouco.
“Nesse caso quem matou o Nonato? O Paulo?”
“Não sei. Se o Paulo odiava o pai você acha que ele iria se sujar vingando a morte dele?”, ela ponderou.
“Tudo pode ser, Karen, as pessoas são loucas. Em todo caso agora não tem jeito, vamos ter que xeretar a vida do pai do Paulo”, eu disse. Ficamos os dois quietos pensando.
O resto da viagem passou mais ou menos rápido. Conversamos sobre restaurantes, filmes, pessoas; falamos sobre emprego, desemprego, situação política, corrupção, moda; lembramos de coisas, épocas, pessoas e situações; discutimos religião, filosofia, comportamento e futebol. Só não falamos mais sobre os crimes até chegar em São Paulo.
Chegamos em São Paulo já depois do almoço. O dia estava nublado e bem abafado. Havia uma esperança de chuva por conta de umas nuvens mais escuras perto da linha do horizonte. Sentia-me cansado e tenso. Pegamos o metrô da rodoviária e descemos na Praça da República. Fomos andando até em casa.
Entramos no prédio na horinha que a chuva começou. Abri a porta do apartamento e fui direto para o quarto tirar a roupa. A Karen desabou no sofá da sala.
“Você não quer fazer um café enquanto eu tomo uma chuveirada?”, gritei do quarto.
“Não”, ela gritou de volta. “Você faz quando eu for tomar banho”.
Entrei no banheiro me perguntando onde estariam as mulheres de antigamente. Uma dessas arrumaria uma roupa limpa pra eu vestir depois do banho e estaria me esperando na porta do banheiro com uma xícara de café quentinho. Lembrei do Nonato. Resolvi tomar um uísque ao invés de café quando saísse do banho. Seria melhor pra acalmar.
Saí do chuveiro e pus meu roupão. Ele ficava ótimo em mim. Sempre achei chique tomar uísque de roupão enquanto ouvia uma garota no banheiro. No caso, era um problema usando o meu chuveiro, mas consegui me iludir um pouquinho.
“Onde está o café?”, ela perguntou assim que saiu.
Ela estava enrolada na toalha. Quando a vi desse jeito achei que era mais do que um problema. Eram vários.
“Não fiz”, respondi. “Resolvi tomar um uísque ao invés”.
“Faz um pra mim enquanto eu me visto então”, ela disse e foi para o quarto.
Fiz o uísque dela e coloquei na mesinha. Sentei no sofá e fiquei pensando no problema dos crimes. Ela voltou pra sala usando uma camisa minha, pegou o uísque da mesinha e sentou na poltrona de frente pra mim.
“Nós vamos dar uma campana na casa do pai do Paulo”, ela falou e deu um gole. “Você tem alguma coisa pra beliscar em casa?”
“Tem amendoim no armário em cima da geladeira”, falei apontando pra porta da cozinha. “Como assim campana?”
Ela se levantou e foi até a cozinha. Quando voltou disse: “Vamos ficar de plantão na porta da casa dele pra ver o que acontece”.
“E se não acontecer nada?”
“Alguma coisa sempre acontece. A gente fala com uma empregada ou com um chofer. Algum tipo de informação a gente consegue”, ela falou colocando um amendoim atrás do outro na boca, “Você quer um pouco?”
Peguei um pouco de amendoim, pus uns dois na boa e fiquei pensando.
“Nós não deveríamos avisar a polícia da morte do Nonato?” A pergunta deveria ter me ocorrido antes.
“Nem pensar, Edu”, ela disse arregalando os olhos, “nós não temos nada com isso e o Raul falou pra eu não me meter”.
“Mas, Karen”, falei alarmado, “isso é crime!”
“Pode ser, mas pra todos os efeitos nós não estivemos lá!” Ela soava definitiva. Achei melhor mudar de assunto.
“E o que é que vamos fazer hoje à noite?”, perguntei.
“Você, eu não sei”, ela respondeu. “Eu vou pra casa pra começar a redigir a matéria. Você podia passar lá pra me pegar de manhã”.
“Eu te pegar? Mas é você que tem carro! Aliás, a gente nem sabe onde mora o pai do Paulo”, falei meio indignado.
“Eu descubro, Edu, não se preocupe”, ela sorriu pra mim e terminou o uísque de um gole só. “Deve ter na lista. Eu não sei o que é que você tem contra lista telefônica”.
Resolvi deixar passar esta. “Que horas você me pega amanhã?”
“Nove e meia está bom pra você?”
“Tudo bem”, respondi já pensando no que fazer sozinho à noite.
Ela levantou e foi até a porta, virou pra mim e disse: “Nove e meia, Edu, vê se não esquece. Amanhã te devolvo a camisa”.
Depois que ela saiu fui para o quarto e me vesti. Coloquei uma camisa ocre e uma calça da mesma cor, mas um tom mais escuro e um cardigan sem manga com losangos pretos e vermelhos, uma borrifada de perfume e resolvi dar um pulinho até o Supremo pra ver se encontrava alguma coisinha diferente na happy-hour. Nunca se sabe. Embora a idéia de uma hora inteira happy tenha me parecido absurda na circunstância.
Fiquei mais ou menos uma hora apoiado no balcão tomando um uísque. Na verdade dois. Talvez tenham sido três. De fato, não foi uma hora muito happy, a única coisinha diferente que encontrei foi o preço do uísque. Achei melhor ir dormir cedo.
A primeira coisa que ouvi de manhã foi Dona Mafalda na cozinha. Parecia tudo normal, o barulho das panelas, ela andando pra lá e pra cá, o som dos carros na rua, a luz entrando pela veneziana. Fechei os olhos para cochilar mais um pouco. Veio-me na cabeça a imagem do corpo do Nonato. Sentei na cama. Comecei a me lembrar do sonho: o Paulo Parente com a cara ensangüentada correndo atrás de mim no trem, eu tentando achar a Karen que tinha ido ao banheiro trocar a minha camisa. O Paulo dava gargalhadas e eu gritava que podia explicar tudo. Tinha mais alguma coisa, mas não conseguia lembrar o que era. Tomei um susto quando a campainha tocou.
“Deixa que eu atendo!”, gritei para a Dona Mafalda, fui até a porta e espiei pelo olho mágico. Não era a polícia.
“Abre logo, Edu!” A cara dela ficava terrível vista por um olho de peixe. Abri. Ela olhou pra mim e disse: “Você não está pronto?”
“Claro! É a última moda para o verão, cueca e camiseta, você não sabia?” Fiz uma cara admirada.
“Vai se vestir, Edu, já é tarde”.
“Karen”, falei sério, “eu estou com medo. Tive um pesadelo terrível. Sonhei que o Paulo Parente queria me matar”.
“Larga de ser bobo, Edú. O Paulo tem coisa melhor pra fazer do que matar publicitário desempregado”.
“E se isso der rolo?”
“Isso já deu rolo! A minha casa estava revirada quando cheguei ontem. Parecia que tinha passado um furacão lá. A minha mesa com tudo fora do lugar, meus papéis espalhados por toda parte. Mexeram em tudo”.
“Quem você acha que foi?”, falei alarmado.
“Só pode ter sido gente do Paulo. Eles deviam estar procurando alguma coisa. Até nas minhas roupas eles fuçaram!”
“E o que você fez?” As coisas não estavam nada boas.
“Liguei para o Raul no ato. Fiquei com muito medo. Não sabia se chamava a polícia, se fugia ou o quê”.
“E o Raul, o que é que achou?”
“Ele falou pra eu sair de casa imediatamente e ir pra um hotel”.
“Por que você não veio pra cá?”, perguntei.
“Eu achei que não tinha que te envolver mais nisso. Pode ser perigoso de repente”, ela falou.
“Quer dizer que roubar repartição pública e ocultar mortes da polícia, tudo bem. Perigoso é vir dormir comigo, né?”, falei sarcástico.
“Pó, Edu! Não é isso!”, ela disse indignada. “Ou então é isso mesmo. Já estou com rolo demais na minha vida. Esses caras podem estar a fim de me matar também, você não entende isso?”
“Deixa disso Karen. Ninguém vai matar você”. Tentei acalmá-la um pouco. Estranho isso. Cinco minutos atrás era eu que estava morrendo de medo. Agora, não só a situação tinha ficado mais séria, como eu estava dando uma de herói. E de cueca e camiseta no meio da sala.
Fui me vestir.
Depois de um pingado e um pão com manteiga na padaria pra não perder tempo, a Karen pôs a chave do carro na minha não e disse. “Você dirige”, num tom que não admitia contestações. Eu dirijo. Sou sempre eu que dirijo. Esse negócio feminista já está indo longe demais, pensei, logo mais os homens vão ficar em casa lavando roupa e as mulheres vão para o bar beber à noite. Achei melhor não tocar no assunto. Já tinha crime demais nessa história.
A casa do pai do Paulo ficava no Ibirapuera, numa rua arborizada e tranqüila. O dia estava quente e o sol estava querendo sair. Um bom dia pra ir nadar. A casa ficava no meio do quarteirão, era térrea e tinha uma fachada de granito. Ela ficava um pouco recuada, tinha um gramado na frente e um muro baixinho com uma grade de ferro. No canto, encostada na rua, havia uma guarita de fibra bege. Não conseguimos ver se tinha alguém dentro da guarita por causa dos reflexos de luz no vidro. Encostei o carro uns cinqüenta metros depois de passar na frente da casa. Fiquei olhando pelo retrovisor.
“Parece tudo tranqüilo”, falei, “você tem certeza que é aqui?”
“Lógico que tenho. Vamos ficar aqui e ver o que acontece”.
Passou um cachorro marrom e branco, com coleira de couro combinando, deu uma mijadinha no pneu da frente e seguiu. Mais pra frente na transversal, uma empregada empurrando um carrinho de bebê azul marinho, atravessou a rua. A Karen acendeu um cigarro. Eu acendi um cigarro. Acomodei-me melhor no banco, abri a janela e dei uma olhada pelo retrovisor e depois pelo espelho lateral. Não havia movimento nenhum, a casa parecia em animação suspensa, como o resto da rua. A Karen começou a ler o jornal e de vez em quando olhava pelo vidro de trás do carro. Ela jogou a bituca pela janela. Eu joguei a bituca pela janela.
“E se não acontecer nada até o fim dos tempos?”, perguntei. “E se não tiver ninguém na casa e foi todo mundo viajar?”
“Daí a gente vê o que faz”, ela levantou os olhos do jornal, “mas por enquanto a gente espera. Nesse tipo de coisa não adianta ter pressa, Edu”.
Olhei um bando de passarinhos muito ocupados não sei com o que, na copa de uma árvore do outro lado da rua. Na verdade eles faziam barulho. Prestando atenção nessas ruas você percebe que elas estão infestadas de passarinhos. Eu só não gosto de passarinho as cinco horas da manhã quando estou levando o que resta de mim para dormir depois de uma noite daquelas. Nessa hora tenho vontade de matar os malditos passarinhos. Mas assim de manhã, descansado, até que eu vou com a cara deles.
“Vai sair um carro”, a Karen falou me cutucando.
Olhei pelo retrovisor e vi um carro preto saindo de ré da garagem. Ele fez uma curva graciosa para trás e veio na direção em que estávamos. Quando passou por nós a Karen disse: “É ela! Vai atrás!”
Liguei o carro, botei primeira e saí atrás com um solavanco.
“Ela quem?”
“A Lena!”
“Que Lena?”
“A mulher do Nonato, Edu!”, ela quase gritou comigo.
“Mas a mulher do Nonato não morreu?”, perguntei idiotamente.
“Então dever ser o fantasma dela”, Karen falou já meio irritada. “Vê se não perde de vista, acabou de entrar a direita ali”.
Eu merecia a resposta. Pelo vidro de trás dava pra ver uma cabeça no banco traseiro do lado direito e do lado esquerdo mais na frente uma cabeça que devia ser do chofer. O diabo do chofer dirigia rápido. Ele pegou a direita e foi descendo em direção a marginal. Por sorte ele pegou a marginal, senão fatalmente perderíamos o carro preto de vista. Ficou pouco, logo reduziu, mudou primeiro para a pista do meio e depois para a da direita. Quando entrou em uma rua à direita a Karen falou: “Acho que ela está indo para o Clube Pinheiros”. De fato. O carro entrou na garagem do clube. Entramos atrás.
“Você é sócia?”, perguntei depois que pegamos o ticket de estacionamento.
“Não”, ela respondeu, “sou jornalista. Deixa que eu dou um jeito”.
Paramos o carro três vagas além do dela. Ela saiu do carro e se dirigiu para a entrada do clube. O chofer foi atrás. Era a Lena mesmo. Achei-a melhor ao vivo do que na fotografia. A Karen esperou ela se afastar um pouco, virou pra mim e disse: “Me espera aqui que eu vou quebrar o galho pra gente entrar”.
“O.K.”, respondi descendo o corpo um pouco no banco do carro. “Vai lá, eu te espero”.
A Karen saiu, se embrenhou no meio dos carros e sumiu. Fumei um cigarro olhando a garagem. Era baixa, cheia de carros e tinha o cheiro de abafado das garagens subterrâneas. Um dos lados da garagem abria para o clube ao nível do chão e era separado por grades. Saí do carro e fui dar uma espiada. Era possível ver as pernas das pessoas do joelho pra baixo. Elas passavam num caminho que acompanhava a garagem. Do outro lado do caminho, um jardim de plantas baixas e atrás delas árvores. Acompanhei um par de pernas que prometiam até perder de vista. Isso levou uns vinte segundos. Fiquei esperando outro par.
“Tudo bem. Podemos entrar”, a voz da Karen me deu um sobressalto. Não tinha percebido ela se aproximar.
“Que história você contou?”, perguntei.
“Falei que estava fazendo uma matéria pro jornal. O porteiro teve que consultar alguém na secretaria, mas tudo bem”.
Entramos. Começamos a andar pelo clube procurando a Lena. Achei que reconheci o par de pernas numa loira que estava jogando tênis. A Lena estava sozinha tomando um suco de laranja numa mesinha de um bar ao lado de uma espécie de solário. Umas moças que não eram de se jogar fora estavam tomando sol espalhadas por perto.
“E agora?”, perguntei discretamente para a Karen e apontei com os olhos para o chofer que estava encostado numa mureta do outro lado.
“Agora vamos pegar uma mesa”, ela respondeu se dirigindo para o bar. “Nada como ficar observando um pouco”.
Sentamos e pedimos uma cerveja. Olhei para o chofer de novo. Ele parecia uma Coca de dois litros. Era enorme, estava de calça branca, camisa verde e tinha o cabelo cortado em ângulos retos. Como era possível eu não ter notado que ele era daquele tamanho não posso imaginar. Ele estava mais para guarda-costas do que para chofer.
“Se você está pensando em abordar ela, esquece”, falei para a Karen. “Aquele mastodonte tem cara de poucos amigos”.
“Nessas alturas do campeonato, Edu”, Karen falou, olhando para o chofer meio de esguelha, “é o nosso único jeito. Ela é a única pessoa nessa história toda que pode nos contar o que aconteceu”.
“Sem dúvida. Mas o segurança deve estar aí justamente para evitar isso”, falei e dei um gole na cerveja.
“Pode ser. Mas ela deve ir ao banheiro sozinha, você não acha?”
“É, acho que sim. Tomara que ela queira ir ao banheiro”.
“Mulher sempre vai ao banheiro, você vai ver”.
Dito e feito. Uns cinco minutos depois a Lena se levantou e foi em direção ao banheiro do bar. Karen esperou quase dez segundos e foi atrás. O Coca dois litros acompanhou a patroa com os olhos, mas não se mexeu do lugar. Eu fiquei apreciando a paisagem. De onde estava era possível ver as duas piscinas que ficavam ao nível do chão e a forma de taça da outra que ficava mais para trás, num plano mais elevado do que o meu. Olhando para a esquerda dava pra ver uma pista de atletismo gramada no centro e com arquibancadas em uma das retas. Muitas árvores por toda a parte e, ao fundo, bem ao fundo, prédios altos. Olhando nessa direção não parecia estar tão no meio do movimento da cidade. A paisagem no solário também era bonita. As moças deitadas tomando sol estavam lindas. Gosto de ver moças se bronzeando. Elas se esticam e viram e parecem não notar que estão sendo observadas. Nunca olham pra gente.
Demorou, mas a Karen apareceu voltando de dentro do bar e sentou de novo na mesa.
“E aí?”, perguntei curioso.
“E aí que falei com ela. Disse que era do jornal, que estava levantando a história e garanti que se ela contasse tudo pra mim eu não ia dizer quem me contou”. Ela falou isso baixo e pegou o copo de cerveja.
“E ela?”
“No começo ficou desconfiada, mas aos poucos relaxou. Disse que estava sendo vigiada o tempo todo e que não tinha como falar comigo sem que a fera aí avisasse o Paulo Parente”.
“Quer dizer que o Paulo está metido nisso”, falei tirando a conclusão brilhante. “Ela já sabe do Nonato?”
‘É claro que está, Edu”, ela falou já com a voz meio impaciente, “mas ela não sabia do Nonato. Quanto eu contei ela ficou chocada. Começou a chorar baixinho e disse que era uma desgraçada. Que era responsável pela morte do Rafael e agora pela morte dele também. Que sua vida tinha terminado. Que queria morrer também. Procurei acalma-la. Ela continuou chorando e soluçando e dizendo que não tinha ninguém no mundo. Falei que os filhos precisavam dela. Não fui muito esperta. Ela começou a chorar mais forte ainda. Disse que não ia conseguir explicar isso para os filhos nunca. Que tinha muito medo do Paulo. Que ele a tinha colocado praticamente em prisão domiciliar e que estava revoltada com o negão aí vigiando ela o tempo todo.
“Prisão domiciliar?”, a pergunta era quase retórica.
“Claro Edu. Você acha que ele vai arriscar que uma história dessas venha a público no meio de uma campanha eleitoral?”, ela falou meio irritada.
“Eu falei que a única garantia que ela tinha era contar toda a história para alguém. Aos poucos parou de chorar e disse que ia pensar, que falaria comigo depois. Quando eu ia sair do banheiro ela me pediu pra ficar na mesa mais um pouco. Em todo caso dei meu telefone pra ela”.
A Lena demorou para voltar para a mesa. Ela estava com cara de quem tinha estado chorando, nariz vermelho. Ela fez um sinal para o chofer. Ele se aproximou da mesa dela arrastando os passos numa ginga que devia fazer um sucesso incrível depois da meia-noite no Bexiga. Ali, à luz do sol, ficava um pouco fora de lugar. Ela disse qualquer coisa pra ele e ele se afastou em direção a garagem. A ginga do negrão era sensacional. Ela devia ter mandado ele buscar qualquer coisa no carro.
Assim que ele sumiu, ela levantou da mesa e veio na nossa direção. Quando chegou perto falou pra Karen:
“Vamos para o bar da sede. Ele não vai nos achar lá”.
Fomos atrás dela sem dar muita bandeira. O outro bar era bem mais fino. Mesas redondas com poltronas de couro e aquele ambiente de sons abafados que lembram biblioteca de mansão. Ela escolheu uma mesa no fundo, meio atrás de uma coluna e sentou.
Ela só levantou os olhos quando chegamos bem perto.
“Que garantia eu tenho que você não vai publicar nada do que eu disser?”, ela perguntou.
“Garantia nenhuma”, Karen respondeu. “Só posso te prometer que seu nome não vai aparecer”.
Ela ficou pensativa. Um garçom se aproximou, pedi uma cerveja.
“Está bem!”, ela disse finalmente. “Vou confiar em você. Preciso mesmo falar com alguém”. Ela olhou pra mim. “E ele?”
“É um amigo meu. Não têm problema nenhum, pode confiar!” A segurança da Karen era contagiante. Se ela falasse nesse tom comigo me convenceria de qualquer coisa. Investigar um assassinato, por exemplo.
Ela deu um suspiro e começou:
“Eu sou de Araraquara e fiz o que toda menina do interior da minha idade fazia. Quanto tinha dezessete anos conheci o Nonato e comecei a namorar com ele. Casei com dezenove. O Nonato trabalhava no Banco do Estado e queríamos casar e ter filhos. Eu queria ser igual a minha mãe, mas o Nonato tinha outras idéias. Era mais ambicioso. Ele queria vir para a Capital e achava que íamos ficar ricos. Mas durante o primeiro ano ficamos lá mesmo. Tentamos ter filhos desde a primeira noite, mas eu não engravidei.
“Mas você tem filhos!”, Karen falou.
“Tenho, mas isso foi depois. Tanto o Nonato fez que conseguiu ser transferido para São Paulo e nós viemos. Fomos morar da Saúde. Ele trabalhava numa agência lá perto. Umas duas semanas depois que chegamos, nós conhecemos o Rafael numa fila de cinema. A gente estava indo ao cinema pela primeira vez em São Paulo e estávamos contentes. Ele pediu para o Nonato comprar um ingresso para ele. O Nonato não gostou muito, mas comprou. Ele agradeceu muito e começou a puxar conversa enquanto entrávamos. Quando descobriu que o Nonato trabalhava no Banco ficou muito animado e disse que tinha uns contatos que poderiam melhorar a condição dele. Assistimos ao filme juntos e ele nos convidou para jantar depois. Eu notei que ele me olhava muito, mas na hora achei que era o jeito dele.
“Ele te deu uma cantada?” Karen perguntou a queima-roupa.
“Não, de jeito nenhum. Ele era muito respeitoso. Só achei que ele olhava pra mim de um jeito engraçado. Bom, depois que o conhecemos, nossa vida mudou. Ele arrumou um emprego para o Nonato na Secretaria da Saúde e nos achou uma casa melhor para morar. Ele não saía lá de casa. Eu não sei muito bem como aconteceu, nem interessa mais agora, mas acabei me apaixonando por ele. Ele vinha durante o dia quando o Nonato estava na repartição”, ela falava olhando pra mesa, “e eu me dava muito bem com ele. Ele era carinhoso e me fazia feliz de um jeito diferente do Nonato. Além do mais, tinha medo de dizer não pra ele e prejudicar a carreira do meu marido”.
“Ele te chantageava?” A Karen perguntou com a maior naturalidade. Comecei a achar que ela estava exagerando, desse jeito a mulher não ia acabar a história. Mas ela nem ligou.
“Não. Isso era medo meu. Eu gostava dele. Uns meses depois eu fiquei grávida. Fiquei com muito medo. O Nonato não desconfiava de nada e estava confiante na vida. Fazia planos e mais planos, falava do trabalho o tempo inteiro. Quando contei para o Rafael, ele disse para eu ter o filho que não ia haver problema. O Nonato ficou muito feliz com a notícia. Tive gêmeos. Assim que olhei pra eles tive certeza que eram de Rafael. Não me pergunte o porquê”.
“Por quê?” A Karen ainda ia ganhar o Troféu Imprensa.
“Não sei. Um sentimento, um jeito, sei lá”. Ela respondeu sem perceber o absurdo. A Karen devia ter aprendido esse truque em algum lugar.
“Mas a vida continuou normal”, ela acrescentou.
O garçom se aproximou com a cerveja. Colocou os copos pra mim, pra Karen e pra ela e depois se afastou. Lena esperou ele se afastar e continuou.
“Foram anos muito bons. A nossa rotina mudou um pouco por causa das crianças, mas passamos a nos encontrar à tarde num apartamento que o Rafael tinha no centro. À medida que os meninos foram crescendo o Rafael foi se apegando mais a mim. Falava que eu tinha que largar o Nonato e ir morar com ele. Ele era viúvo e morava sozinho. Eu resisti o quanto pude, mas esse ano eu resolvi. Contei tudo para o Nonato e saí de casa para morar com o Rafael”.
“Como o Nonato reagiu quando soube?”, Karen perguntou.
“Ele ficou transtornado. Me xingou muito e até ameaçou me bater. Mas ele é um frouxo. Teve medo pela carreira. Concordou com a minha saída, mas não me deixou levar os meninos de jeito nenhum”.
“O Rafael era apegado às crianças também?” Karen perguntou.
“Muito. Ele era padrinho delas. Isso foi um veneno na vida do Rafael desde o primeiro minuto que cheguei na casa dele. Ele queria as crianças de qualquer jeito. Eu tentei convencer o Nonato a nos deixar ver os meninos de vez em quando, mas ele não deixou. O Rafael me deu um prazo de dois meses. Depois ele ia tomar as providencias dele. Nunca me falou o que. Na noite em que morreu ele tinha ido buscar as crianças. Agora está morto. Acabou tudo. Acabou minha vida”. Ela estava com a cabeça baixa. Parecia realmente arrasada.
“Onde estão as crianças?” Karen no ataque.
“Estão comigo. Naquela noite os seguranças as trouxeram pra mim”. O rosto dela se alegrou um pouco, mas logo ficou triste de novo.
“Quem você acha que matou o Nonato?” A Karen perguntou. Comecei a ficar espantado com a pergunta quando um olhar da Karen me pregou na cadeira. Achei prudente continuar quieto.
“Não sei. Eu acho que isso é coisa do Paulo. Eu sou vigiada o tempo todo e só saio acompanhada de segurança. Ele não quer que eu fale com ninguém. Ele toma conta de tudo. Nem o telefone posso usar”
Ela parecia indignada.
“Eu tenho muito medo por mim e por meus filhos. É por isso que estou falando com você. Alguém tem de saber a história. Ele não quer escândalo. Ele e o pai se odiavam”.
A Karen fez cara de “não te falei?”, para mim por um centésimo de segundo e continuou a prestar atenção.
“E agora”, Karen perguntou, “o que você vai fazer?”
“Não sei”, ela respondeu com um ar triste e uma voz pequenininha. “Eu não sei mais nada. A minha vida acabou. Tenho que criar os meninos. Só isso”.
Ficamos quietos. O silêncio na mesa ficou um pouco opressivo. Ela levantou os olhos e olhou pela janela. Olhamos também. O crioulo estava vindo em direção ao bar. Nos despedimos dela e nos levantamos. Saímos pela porta de trás do bar e fomos embora. Enquanto andávamos até a garagem perguntei pra Karen:
“Por que você contou do Nonato pra ela?”
“Primeiro porque achei que era a única maneira de convencer ela a falar, depois porque não ia mudar nada. A vida dela acabou mais do que ela pensa”.
Não falamos do assunto no caminho de volta. Achei que ela tava pensando naquilo tudo e não quis interromper. Além disso, eu também estava me sentindo meio murcho. Ela me deixou em casa e foi até o jornal. Eu estava com um gosto ruim na boca e um sentimento de vida besta.
Entrei no apartamento, sentei no sofá e fiquei pensando. Nos gêmeos, na Lena, no Nonato. Pensei no Rafael Parente. Quanto desperdício de vida e de tempo. O que seria de todos eles? O que seria dos meninos, meu Deus. Com uma história de vida destas, ainda por cima gêmeos, o que não ia facilitar nada, qual seria o futuro deles? Será que algum dia alguém contaria a eles sua verdadeira história? Será que lembrariam de alguma coisa? Como você explica uma história destas? E a Lena então... Como será que faria para viver, será que receberia alguma coisa? Não se podia esquecer que o Paulo Parente poderia conseguir abafar esta história. Certamente tinha poder para dar um jeito de tirar tudo da mão dela e das crianças. Que mundo podre esse que corre por baixo do mundo visível. A gente nem imagina os absurdos que acontecem o tempo todo. A história verdadeira por trás do que lemos no jornal. Fora o que nem sai nos jornais. É tudo poder, dinheiro, corrupção, podridão. Senti asco de tudo aquilo.
O Paulo Parente foi eleito prefeito afinal. É o Brasil, acho. Será que algum dia vai mudar? Será que não é bem o Brasil, mas é o mundo? Ou será que são as pessoas que são assim? Não sei. Pode ser.
O que eu sei é que não parece haver fim para a miséria humana. Senti-me sem o menor humor, sem vontade de fazer graça com nada.
A Karen foi tirada do caso naquele mesmo dia. O Raul se comportou de modo estranho. Elogiou muito a matéria da Karen, mas disse que ia esperar mais um pouco para publicar. Precisava de mais elementos. Ele pôs um repórter de polícia para acompanhar o desenrolar do caso dizendo que o sujeito tinha mais experiência e que era preciso pensar duas vezes antes de publicar um escândalo desse porte. Podia prejudicar o jornal. Enfim, é claro que a reportagem não foi publicada. Indignada, a Karen brigou com o Raul e pediu demissão do jornal. Umas semanas depois, ela me disse que um sujeito tinha confessado ter matado o Nonato em Araraquara. Ele já era procurado por outras mortes na região. A morte do pai do Paulo só saiu como anúncio na seção de falecimentos do jornal.
Continuei desempregado por mais um tempo. Mas, em comparação com o que a vida tinha aprontado com a Lena, ou da traição que tinha trazido os gêmeos ao mundo, que importância tinha isso? Acabaria dando um jeito.
A Karen mais uma vez, tinha me enfiado em uma história cavernosa. Por outro lado, se eu a conhecia bem, essa não tinha sido nada, a próxima ia ser bem pior.