1/01/2008

Fogo Paulista


Eram sete e meia da noite quando atravessei a rua molhada debaixo de garoa e entrei no saguão do prédio. O porteiro estava assistindo novela em uma TV em cima do balcão. Resmunguei um “Ba noite” pra ele e fiquei esperando o elevador. Eu não estava com o melhor dos humores. O sujeito me ignorou por completo. Nem tirou os olhos da televisão. Quando cheguei no meu andar e abri a porta do elevador, vi a Karen sentada na escada, subitamente iluminada pela luz que saia do elevador. Problema. Eu nunca vou conseguir entender por que ela me procura ao menor sinal de encrenca.
“Achei que você nunca mais ia chegar em casa”, ela falou levantando e pegando a bolsa e uma pasta que estavam no degrau. “Onde você foi?”
“Como assim, onde eu fui?”
“Eu liguei pra agência as 6 e disseram que você já tinha saído”.
“Tive que passar numa produtora”, falei enquanto abria a porta e acendia a luz. Ela entrou atrás de mim e sentou no sofá. Estava em casa. Ela sempre estava em casa na minha casa. Bem, talvez fosse culpa minha. De qualquer forma dessa vez ia ser diferente.
“Qual é o galho?” Sentei na poltrona e acendi um cigarro.
“Galho nenhum. Será que não posso visitar um amigo?”, ela perguntou arregalando os olhos.
“Pra cima de mim, Karen?” Fiz uma cara cínica. “Fala logo!”
“Olha aqui, Edu. Se você não quiser ajudar, tudo bem, mas não precisa ser cínico. Como é que você sabe que é problema? E se eu tivesse vindo visitar um amigo? Com que cara você ia ficar?”
“Não sei. Mas como você não veio ‘apenas’ visitar um amigo, nós vamos ter que esperar uma outra oportunidade para ver a minha cara”. Dei um suspiro. “Desembucha, vá!”
Ela ficou me olhando sem dizer nada. Parecia triste. Se eu não a conhecesse bem era capaz de ficar com pena dela. Ela se ajeitou melhor e pescou um cigarro de dentro da bolsa. Remexeu na bolsa e tirou um isqueiro lilás e acendeu o cigarro. Deu uma tragada e soltou a fumaça pra cima.
“Estou fazendo uma matéria sobre contrabando”, ela falou finalmente.
“Você está trabalhando aonde agora?”, perguntei.
“Em lugar nenhum. É frila”.
Bom. Só me faltava essa. Ela queria que eu segurasse a mão dela numa matéria sobre contrabando.
“Por que você não procura uns assuntos menos perigosos para fazer matérias?”, perguntei um pouco indignado. “Por que têm que ser sempre, assassinato, barbaridade, contrabando?”
“Sabe que eu mesma não sei, Edu”, ela falou sincera. “Eu antes gostava de cobrir política ou então economia. Mas agora, quando resolvi fazer alguma coisa, a primeira coisa que me veio na cabeça foi crime. Acho que estou ficando louca, só me dá vontade de trabalhar com matérias que sejam sobre os que estão fora da lei”.
“É verdade que a coisa mais fácil de achar no Brasil é crime. Só tem nego barbarizando por baixo do pano. Que negócio é este de contrabando?” Foi eu fazer a pergunta para sentir que tinha falado demais.
“É o seguinte. Você sabe que o Paraguai é o segundo maior exportador de soja da América do Sul?”
“Não, mas o que têm isso?”
“Não teria nada de mais se eles plantassem soja”.
“Não plantam?!”
“Não!”
Ficamos quietos por um momento. A garoa continuava lá fora. Senti vontade de beber alguma coisa.
“Você quer um uísque?”, perguntei.
“Quero”.
Fui até a cozinha e preparei dois uísques. Foi difícil tirar o gelo do congelador. Estava na hora de degelar a geladeira. Parecia a Fortaleza da Solidão do Super-Homem aquele congelador. Voltei para a sala e dei um copo pra ela. Dei um belo gole no meu e sentei de novo. Fiquei quieto mais um pouco.
“Você não acha que vai se meter com gente graúda demais? Ainda por cima sem a cobertura de um jornal?”
“Olha, Edu. Eu estou de um jeito que tenho que arriscar um pouco e meter as caras. De repente uma matéria dessas me coloca de novo no mercado. As pessoas falam de mim e, além disso, vou me sentir mais ativa, fazendo alguma coisa. Estou precisando disso”.
“Perfeito. Agora o que te faz acreditar que eu esteja precisando arriscar a minha vida me metendo com contrabandista paraguaio por causa de soja, que é uma coisa, aliás, que eu nem sei nem pra que serve direito?”
“Ninguém vai arriscar a vida por causa de nada, Edu”, ela falou. “E eu ponho o seu nome na reportagem como colaborador, além disso, se a matéria for bem transada, talvez até sobre uma graninha pra você”.
“Muito obrigado pelo seu interesse humanitário, mas acho que meus interesses se encontram noutra direção. Meu negócio é talento e não aventura, será que você não sacou ainda?”
“Edu, o negócio não é talento, o negócio é tá rápido!”
Não pude deixar de rir. Ela tinha um jeito de desconcertar as pessoas que sempre me deixava admirado. Quando essa pessoa era eu, só conseguia rir. Era quase uma concordância.
“Tudo bem, moça, deixa eu pensar um pouco”, falei já com meio caminho andado para me meter em outra das suas aventuras sem pé nem cabeça. “Pra quem você vai vender essa reportagem?
Não sei ainda”, ela respondeu. “Na hora a gente vê!”
Contrabando pra mim era comprar uísque de caixa junto com o pessoal da agência. Isso não, isso era pra valer. Até que eu estava ficando sensato com a idade.
“Escuta, Karen”, falei pacientemente, “eu agora tenho um emprego, tenho horário, tenho coisas pra fazer, como é que eu vou poder te ajudar?”
“Você não tem férias?”
“Tenho. Daqui a sete meses”.
“Não dá pra você tirar uma semana antecipada?”
“Claro!”, eu disse, “é só chegar lá e dizer para o meu chefe, escuta estou precisando de uma semana de licença pra fazer uma reportagem sobre contrabando de soja pro Paraguai, tudo bem? Sabe o que ele vai dizer? Ele vai dizer que se eu começar a beber no horário de expediente eu vou acabar perdendo o emprego, é isso que ele vai dizer”, falei, dei um gole no uísque e encostei de volta na poltrona.
“Quer dizer que você não quer me ajudar”, ela falou indignada. Parecia não ter prestado atenção numa palavra do que eu tinha dito.
“Não, acho que não”, falei um pouco melancólico. “Não sou a mesma pessoa mais. De repente parece que as coisas ficaram um pouco mais gastas do que já estavam. Os amigos mais transparentes e menos dignos desse nome. Não estou falando de você”, olhei para os olhos dela, “mas de um modo geral eu sinto que a maior parte deles são somente pessoas que se cruzam numa estrada, de passagem. E que, à medida que você vai percebendo que não pode mais adiar certas decisões, essas pessoas vão se afastando de você. Acho que não sou mais interessante. Se é que algum dia fui”.
“Nossa. Não imaginei que você estivesse deprimido desse jeito”, ela falou meio preocupada.
“Não sei se estou deprimido ou não. Acho que cansei desse personagem e não tenho outro para colocar no lugar. Acho que estou meio perdido, é isso”. Dei um bom gole no uísque.
“Que decisões são essas?”
“É muito complicado de explicar agora, preciso pensar. Preciso levar a minha vida um pouco mais a sério. Fazer somente o que deve ser feito. Eventualmente aparece uma resposta. Vou esperar”.
“Enquanto isso você não quer me fazer companhia, enquanto não se define?”, ela perguntou retomando onde havia parado.
“Não. Não quero, já disse”, falei meio exasperado. Levantei e fui para a cozinha. Mais gelo.
“O.K., Edu. Você venceu”, ela veio atrás de mim na cozinha. “Não vou mais encher o seu saco. Eu me viro sozinha, tudo bem”.
“Me desculpe, Karen. Mas ando meio sem paciência com os outros. A minha vida tá meio besta, apesar do emprego. Tenho a impressão que não consigo sair do lugar. Estou sempre recomeçando a mesma coisa de novo e de novo”.
“Acho que já vou indo”. Ela colocou o copo na pia e virou pra mim.
“Me desculpe”, falei de novo.
“Não esquenta a cabeça com isso”, ela respondeu, e me deu um tapinha carinhoso nas costas.
Ouvi o barulho da porta da frente fechando e depois a porta do elevador fazendo um barulho metálico. Fiquei um tempão ainda acordado olhando as luzes pela janela do apartamento, sentado na poltrona da sala. Fui dormir cedo. Devia ser umas dez e meia.

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Era um dia como qualquer outro na vida de Afonso Brandão. Delegado de Polícia, 55 anos, viúvo*, tinha tido dois filhos*. Um, logo depois de se formar advogado, tinha morrido. Brandão não falava deste assunto*. O outro, na polícia também. Laboratorista na Polícia Científica. Uma especialidade sem muito brilho. Por outro lado, bem mais* seguro. A possibilidade de se meter em confusão era muito menor.
Um homem de estatura média, respeitável, com entradas*, os cabelos que sobraram já mais para grisalhos do que para castanhos*. Já não dava tanta importância para a aparência. Já não achava mais graça em jogar futebol com a turma, ou sair para beber uma cerveja no fim da tarde. Estava ensimesmando, ficando sem assunto. Gostava mesmo é de trabalhar na pequena oficina de marcenaria que tinha ajambrado atrás da casa. Era capaz de ficar horas ali. No começo fazia pequenos consertos na casa, arrumava isso e aquilo. Mas um dia, meio sem querer, começou a mexer num bloco e acabou fazendo um pato de madeira. Não que tenha ficado muito bem feito. Mas ele achou que ficou bom. Deu o nome de Alex a esse primeiro pato. Alex morava na prateleira mais alta da pequena oficina. Depois do Alex foi melhorando, sofisticando, fazendo patos cada vez mais caprichados. Dava-os de presente de aniversário, de Natal. Quase todos seus amigos já tinham um. Ele não se importava. Gostava de faze-los e pronto. Era seu hobby. Ali se esquecia da vida, da violência, da rotina massacrante e meio sem sentido de sua existência.
Enfim, era mais um dia como outro qualquer para Afonso Brandão. Chegou na delegacia às 9 da manhã e se inteirou de tudo o que havia acontecido no plantão noturno. O de sempre: brigas em porta de bar, assaltos, seqüestro relâmpago, gente que teve o carro roubado, toca-fitas, essas coisas. Nada de extraordinário. O que, nos dias que correm, até que era bem extraordinário, pensando bem. Mas Afonso não estava com muita vontade de filosofar, muito menos de pensar bem sobre essas coisas. Queria apenas tirar as coisas da frente, fazer o que tinha que fazer e atravessar o dia. Passava o dia esperando a hora de esquecer o dia na sua pequena oficina de marceneiro.

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Na manhã seguinte liguei pra ela.
“Quer almoçar comigo?” Estava me sentindo meio culpado por ter sido rude na noite anterior. De mais a mais ela devia estar dura, um almoço num restaurante viria em boa hora. Pelo menos era isso que eu achava. As manhãs fazem tipos como eu ficarem indevidamente otimistas.
“Você tá melhor?”, ela perguntou do outro lado.
“É, acho que sim”, respondi. “Te pago um almoço, que horas você me busca?”
“Que horas você sai?”
“Te espero lá embaixo meio-dia e meia, tá bom pra você?”
“Tudo bem”.
Nos despedimos. Eu estava trabalhando numa campanha institucional para uma fábrica de bebidas. Eles queriam uma coisa sóbria. As coisas que a gente faz pra sobreviver.
Ao meio dia e vinte eu tomei um cafezinho de garrafa térmica e desci. O dia estava meio incerto, nublado com uns rasgos de sol aqui e ali. Lá pros lados do Jaraguá tinham umas nuvens ameaçadoras.
Vi o carro dela chacoalhando a um quarteirão de distância. Com um fusca velho desses, ela nem precisaria dizer que estava desempregada, tava na cara.
“Oi”.
“Tudo bem?”, perguntei, enquanto fechava a porta.
“Não fechou direito”, ela falou. Abri e fechei com mais força.
“Escuta, Edu, eu tenho que dar uma passadinha no banco, mas é coisa rápida. Você tem hora pra voltar?”
“Se é pelo almoço não precisa. Eu pago”.
“Aceito, Mas não é por isso. É que eu tenho que pegar um talão de cheques e pagar uma conta de luz. Aonde a gente vai?”
“No caminho a gente resolve. Onde é seu banco?”, perguntei. Quem sabe tem alguma coisa lá perto”.
“Na Brigadeiro perto da Paulista”.
“A gente podia ir no Roma lá na Angélica. Você está a fim de comida italiana?”
“Acho ótimo”, ela disse. “A cavalo dado não se olha os dentes”.
Paramos no estacionamento do banco e entramos pela porta lateral. Assim que entrei fui agarrado pelo braço violentamente e empurrado pra cima de um monte de gente assustada num canto da agência. Dei de encontrão num crioulinho que quase desmontou. A Karen caiu por cima de um senhor de óculos”.
“Fica quieto senão eu queimo!” O sujeito que tinha me empurrado falou apontando um enorme revolver. Ele estava com uma dessas máscaras de criança com a cara do Mickey. Eu nunca fui muito com a cara do Mickey”.
“O banco está sendo assaltado pela família Disney”, a Karen falou meio entre os dentes e baixinho, “e em pleno horário de almoço!”
Era verdade. Tinha o Pateta e o Pato Donald também. O Pateta estava do outro lado da agência e o Donald estava limpando os caixas. Ele tinha parado quando nós entramos, mas continuou logo em seguida.
“Acho que o Mickey não foi com a minha cara”, falei pra Karen.
“Quietos!”, Mickey balançou o revolver.


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A chamada chegou por volta do meio-dia. Assalto à banco na hora do almoço em plena Brigadeiro Luis Antonio.
O delegado Afonso Brandão entrou em piloto automático. Pegou o paletó nas costas da cadeira e começou a gritar ordens. Saíram em quatro viaturas. Quando chegaram já havia duas viaturas da PM. O sargento veio falar com ele.
O Sargento era um sujeito de uns quarenta e poucos anos, já meio fora de forma. Na plaquinha do peito dele estava escrito ‘Sgto. Cristóvão”
“Vamos cercar”, disse o delegado Brandão. “Existe saída pelos fundos?”, Perguntou.
“Não senhor”, respondeu o sargento.
“É melhor chamar o helicóptero também, Sandro”, disse o delegado para o investigador que estava a seu lado.
Estavam todos de armas em punho. Alguns PMs portavam submetralhadoras. As viaturas todas de portas abertas, para proteção em caso de tiroteio.
“Rui, providencie um cordão para manter as pessoas longe”, ordenou o delegado a um outro investigador. “E me traga um megafone o mais depressa possível”.
Mais viaturas iam chegando a todo o momento. Chegavam com os motores rugindo, cantando os pneus, abrindo caminho em meio ao trânsito já impossivelmente engarrafado naquela altura dos acontecimentos, subindo nas calçadas, com as sirenes fazendo um alarido ensurdecedor. Logo a seguir já se ouvia o helicóptero da polícia. Ele parou sobre a agência do banco, a uns cinqüenta metros de altura.
“Quantas pessoas têm lá dentro”, perguntou o delegado ao sargento.
“Não sabemos ao certo” ele respondeu. “Talvez umas vinte ou vinte e cinco”.
“E os ladrões, quantos são?”
“Uns três. Quatro no máximo”, respondeu o sargento.
Bem. A agência estava cercada. O helicóptero veria uma tentativa de fuga pelo telhado. Agora era negociar. “Cadê a porra do megafone”, gritou o delegado irritado pra ninguém em específico.

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Eu só percebi as sirenes quando elas já estavam chegando na porta do banco. De repente era sirene pra todo o lado.
“É a polícia!”, falou o Pateta. Parecia com medo. “Polícia pra todo lado”
“Se invadir eu queimo eles!” Mickey apontava o revolver pra mim. Logo pra mim!!!
“Vamos negociar com eles”, a Karen falou. “Eles não vão ser loucos de invadir, nem vocês podem sair na louca, senão eles fuzilam”.
“Cala a boca, e não se mete!” O Mickey apontou pra ela agora.
“Eles tem que deixar a gente se mandar”, falou o Pateta. “Vamos mandar ela negociar com os homens. Dizer que se invadir, a gente queima todo mundo, porra!”, quase gritou o Pateta. Ele andava para lá e para cá rente ao balcão dos caixas. O Pato Donald ainda não tinha falado nada. Estava imóvel atrás do balcão.
Eu tinha passado boa parte da minha vida tentando evitar que a Karen se metesse onde não era chamada. Tudo inútil. Nem sob a mira de um revolver ela fechava a matraca.
“Vocês estão cercados!” Era uma voz metálica com uns guinchos de microfonia. “Saiam com as mãos pra cima!”
“Manda a mina sair e dizer que se quiser invadir vai ter!”, falou Pato Donald pela primeira vez. Não sei por que eu esperava uma voz esganiçada.
“Me dá um lenço, Edu”, a Karen Pediu.
“Não tenho lenço”, respondi aflito. O senhor de óculos deu um lenço pra ela. Mais pra trás tinha uma senhora que falava “Ai meu Deus” sem parar. O Pateta não esperou a concordância dos outros e foi levando a Karen em direção à porta do banco.
“Fala que a gente quer um pinote com o tanque cheio!” Pateta disse enquanto se escondia atrás dela.
Era possível ouvir a Karen falando do lado de fora, mas não dava para distinguir as palavras dela.
“Libertem os reféns e saiam de mãos pra cima”, disse a voz do megafone.
A Karen logo voltou para dentro. Mickey tinha se aproximado e estava perto do Pateta, um de cada lado da porta. O Pato Donald ficou apontando uma arma pra nós.
“E aí?”, Pateta segurou o pulso dela.
“Você ouviu. Eles falaram que primeiro vocês têm que libertar os reféns”, disse ela.
“Porra nenhuma! Eles estão pensando que a gente é mané?” Mickey já meio transtornado. “Vai lá fora e diz pra eles quer se não derem um carro, vamos apagar um a cada meia hora!”
Todo mundo ficou tenso. Era a primeira ameaça de morte concreta. A “Ai meu Deus” continuava a todo vapor. O senhor de óculos suava sem parar e cada vez mais. Estávamos todos amontoados em volta de uma mesa com uma plaquinha de “Abertura de Contas”. Devíamos ser umas trinta pessoas. A maioria estava aterrorizada demais para falar qualquer coisa. O crioulinho era o único que parecia estar se divertindo com aquilo tudo. Estava com os olhos arregalados. Eu não estava me divertindo nada. Já estava começando a ver aqueles tipos infantis começando a matar um por um. Ia ser péssimo como propaganda para a Disney. Pelo menos ainda não tinha perdido o humor.
“Vai lá e fala isso pra eles”, disse o Pateta empurrando a Karen pelo ombro. Ela foi.
“Soltem as mulheres e as crianças enquanto providenciamos o carro”, disse a voz no megafone.
A Karen entrou de volta.
Dava pra ver por uma fresta na janela que a movimentação lá fora era impressionante. Carros de polícia pra tudo quanto é lado e uma pequena multidão mais para trás um pouco cá. Ouvi um helicóptero sobrevoando o banco.
“Não tem criança nenhuma aqui dentro”, disse o Mickey. A voz contrastava com a cara sorridente da máscara.
“E eu?”, perguntou o crioulinho tímido.
“Cala a boca! Você não é criança, você é boy!”, gritou o Pateta com cara idiota, mas com um jeito assassino.
“Vamos soltar as mulheres!”, disse o Pato Donald de olho arregalado. “É melhor mesmo, mulher só serve pra encher o saco”.
“Menos ela”, disse o Mickey apontando pra Karen. “Ela fica de mensageira”.
O Donald virou pra mulher do “Ai meu Deus” e disse: “Fala para eles que quando eles derem o carro a gente solta o resto”.
A mulher olhava para ele com o olhar ausente. Ele repetiu a ordem para uma mulher magra de cabelos escorridos que estava um pouco mais atrás e parecia mais calma. Ela fez que sim com a cabeça.
“Você tá louco?”, falou o Mickey, virando pra ele. “Na hora que a gente soltar o resto eles passam fogo na gente”.
“A gente pega dois pra escudo e se não houver perseguição a gente solta depois”, respondeu o Pato.
O debate continuou mais um pouco e finalmente Pateta decidiu.
“Vamos soltar as mulheres e acabou”, decretou ele. “E já, que quanto mais tempo a gente ficar aqui de bobeira, pior”.
O Donald juntou as mulheres, umas oito ao todo e, escondido atrás delas, levou o grupo até a porta. Elas saíram uma a uma. “Ai meu Deus” na frente.
Corre-corre lá fora. O megafone gritou:
“Não atirem! Não atirem! São as mulheres!”
O crioulinho ficou. Já não estava mais se divertindo. Era olhar pra ele e ver que não era mais criança mesmo. Só neste momento é que pensei: A reportagem sobre crime vai sair afinal. Só não vai ser sobre contrabando. Pelo menos vai ser mais fácil de explicar lá na agência.

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Até que as coisas estavam evoluindo, pensou o delegado Brandão. Pelo menos já tiramos as mulheres lá de dentro.
Estavam sendo atendidas e encaminhadas por mulheres policiais militares.
Mas o bate-boca entre os policiais já tinha começado. Os que queriam invadir versus os que queriam vencer pelo cansaço. De um lado Polícia Militar, de outro, Polícia Civil. Era sempre assim. Onde já se viu uma coisa dessas. Restos da ditadura. Como é que podia haver duas polícias trabalhando separadas nunca pode entender. Não podia dar certo. E não dava, é claro. Viviam brigando. Dois comandos, duas estruturas. Ciumeiras. Um querendo levantar os podres da outra. Uma querendo aparecer mais do que a outra. E a bandidagem correndo solta. A violência aumentando. O tráfico aumentando. Falta dinheiro, falta salário. Falta tudo.
Como sempre não prestou muita atenção. Quem comandava ali era ele e já tinha decidido umas coisas. Não podia invadir, ia morrer gente na certa. Não podia ficar ali eternamente também. Bandido nervoso é a pior coisa. Acaba fazendo merda. Afonso Brandão não queria morte de gente inocente nas costas. Era melhor dar um carro em troca dos reféns e usar o helicóptero para fazer a perseguição. Podia interceptá-los em um lugar mais vazio, com menos chance de atingir pessoas desavisadas. Não podia começar um tiroteio na Brigadeiro Luis Antonio. Isso de jeito nenhum. Um carro em troca dos reféns. Era assim que ia ser.

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Lá fora o maior reboliço. Dentro também. Eu continuava meio encostado na mesa. O crioulinho estava sentado no chão meio conformado, como se tivessem mandado ele ao banco e a fila fosse grande demais. O velho de óculos continuava a suar muito. A Karen conversava com o Pato Donald. Ela não parecia estar com medo. Ela nunca tinha medo. Eu desconfio que ela gosta dessas situações. Mandaram ela sair de novo para apressar as coisas. Queriam logo o carro. Estava todo mundo muito nervoso. Chegava mais polícia o tempo todo. Só se ouvia barulho de sirenes chegando. O helicóptero parecia ter estacionado lá em cima.
A Karen voltou lá para fora para cobrar o carro.
O megafone disse que já estava sendo providenciado. Mas não iam dar o carro antes de soltarem os reféns.
Ela voltou para dentro. Ninguém podia jurar que não era uma armadilha. Karen não achava que eles iriam tentar invadir. A família Disney já não tinha tanta certeza. A televisão já estava lá fora. Na opinião dela isto por um lado poderia garantir que tudo iria correr bem, por outro, a polícia poderia querer se mostrar eficiente, ainda mais agora que o ibope dela andava meio baixo por conta de uma recente invasão na Penitenciária do Estado. Os bandidos perguntavam as mesmas coisas várias vezes e sem parar. Estavam muito nervosos. A Karen, por sua vez, também falava muito rápido e entremeava as informações que dava com perguntas sobre as coisas mais variadas.
“Você têm filhos?”
O Pateta: “Tenho três com a patroa, fora os PF”.
“Isso não interessa, meu!” Pato Donald. “Que carro que eles vão arrumar?”
“Acho que é um Santana”, respondeu a Karen.
“A gente quer uma Blazer, é melhor pra tranco! Vai lá dizer pra eles que a gente só sai de Blazer, disse o Mickey.
“Não começa a inventar, qualquer porra serve!”, cuspiu o Pateta de volta.
“Qualquer porra, não! Tem que ser carro com motor de responsa. Carro pequeno não!”, devolveu ríspido o Mickey.
“Eu pedi para eles arrumarem uma Blazer!”, a Karen falou, não sei se era verdade ou não. Mas serviu para encerrar o assunto. Pelo menos por enquanto. “O que é que vocês vão fazer com a gente? Vão levar todo mundo?”, perguntou a Karen, aos poucos extraindo informações.
“Acho que vamos ter que liberar essa galera”, respondeu o Mickey. “Mas pode ser perigo”.
“Você e o magrelo ali vão ficar”, disse o Pateta apontando para mim.
A Karen pareceu satisfeita com esse arranjo. O magrelo aqui também, afinal não me sentiria bem largando a Karen com aqueles caras. Alivio coletivo do povo que ia ser liberado.
Achei que talvez dessem o carro. Eu pessoalmente achava que eles iam armar alguma cilada com isso. Não dava pra saber o que a Karen achava. A atitude dela era de que ia dar tudo certo. A família Disney estava preocupada e nervosa, mas não tinham outra escolha. Tinham que arriscar.
O megafone cobrou a liberação dos reféns. Se não, não ia ter carro nenhum. A Karen saiu lá para fora para dar a notícia da liberação e avisar que íamos ficar nós dois como garantia. Entrou de volta sem resposta do megafone.
“É melhor libertarem os reféns”, esganiçou o megafone, insistindo.

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Ele tinha que ser duro, inflexível. Ou libertavam as pessoas ou não tinha negócio. Era preciso que cada concessão correspondesse a um ganho. Esse era o segredo da negociação. E tinha que ter calma. Muita calma.
Já tinha mandado providenciar uma Blazer e deixar na espera na Al. Santos. Deixa eles irem embora daqui, pra longe do reboliço. Depois a gente vê. Mandou também que várias viaturas seguissem para as grandes avenidas e aguardassem. Nove de Julho, Rubem Berta, Paulista, Brasil e Consolação. Da Civil e da Militar. Ia parecer que ninguém estava seguindo. Só o helicóptero ia seguir em um primeiro momento, e mesmo assim bem de cima.
A cada tanto tempo saia a moça para fora para negociar. Até que as coisas estavam andando. Já tinha recebido as informações dadas pelas mulheres libertadas. Máscaras de personagens de revista em quadrinhos. Os caras não tinham mais nada pra inventar. De onde será que tiravam essas idéias de jerico. Deve ser de filme americano, é claro. Coisa idiota sempre vem de filme americano. Todos armados até os dentes e já tinham pegado o dinheiro. Não deviam ser profissionais. Profissional usa aqueles gorros de esquiar, não máscara de festa infantil.

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O Mickey juntou os reféns e foi empurrando-os até a porta. Pelo visto ia ser como a primeira leva. Eles começaram a sair um a um.
“Você sai também logo depois e avisa que vai ficar com o magrelo aqui”, disse o Pateta para a Karen.
“Tudo bem”, respondeu a Karen.
Eu fiquei na minha. Acendi um cigarro. A excitação era tanta que tinha até esquecido de fumar. Em todo o caso não era um bom método de parar com o vício. Muito perigoso.
A Karen saiu e voltou. “Eles vão mandar o carro”, ela disse.
“Volta lá fora e diz que se houver perseguição a gente queima vocês”, de novo o Pateta para a Karen.
Ela foi e voltou novamente.
Dessa vez não houve resposta do megafone.
“Eles disseram que tudo bem. Não vão perseguir”, ela disse.
Pararam o carro ostensivamente na porta do banco e deixaram as quatro portas da Blazer preta abertas. Tinha toda a cara de cilada, devia ter uma bomba dentro, ou então só tinha gasolina pra andar uns poucos quilômetros. Não sei o que, mas achei que alguma coisa tinha. Comecei a fazer planos de ser amigo da Karen só por telefone. Achei que ela arrumaria uma encrenca internacional qualquer a partir de grampos telefônicos ou sei lá o que. Por e-mail então. Estava começando a ficar paranóico. Se morresse nessa ia ficar muito puto com ela.
“Vocês dois também vão sair no disfarce”, falou o Pato virando pra mim e pra Karen. “Assim eles não vão saber em quem atirar”.
“Isso é absurdo!”, eu falei pela primeira vez. “A polícia vai achar que todo mundo é assaltante e vai cair matando”.
Todos olharam pra mim ao mesmo tempo. Não dava pra ver o rosto dos facínoras, mas tive a impressão nítida que eles estavam com uma cara de surpresa.
“Pode ser, mas é assim que vai ser”, disse o da cara de Mickey. “Qualquer bronca a gente coloca vocês na frente”.
“Eles não vão atirar em ninguém, Edu”, a Karen falou, “eles sabem que nós vamos de reféns”.
“Não sei não, não boto muita fé no raciocínio desses caras”.
“Fica na sua, magrelo!”, disse o Pateta.
No pacote de máscaras que os desgraçados arrumaram ainda tinham duas máscaras: uma de Minnie e outra do João Bafo de Onça. E me deram a da Minnie! É... É destino. Na minha única chance na vida de aparecer na televisão eu ia aparecer com a cara da Minnie. Ainda por cima ia ter que passar o resto da vida escutando gozação. Isso se o apelido de Minnie não grudasse. Aí sim, ia ser ótimo.
O Pateta juntou as sacolas com o dinheiro e foi ver se achava mais alguma coisa. Pegou uma calculadora de cima de uma mesa e remexeu numas gavetas. Logo voltou. A Karen não ficava má de João Bafo de Onça. Pelo reflexo no vidro achei que eu estava uma Minnie meio alta.
Saímos. Atrás dos carros do outro lado da rua uma pequena multidão em semicírculo com câmeras, revolveres, megafones e o diabo. Saímos todos juntinhos e fomos caminhando devagar até a Blazer. O Pato Donald estava com a escopeta ostensivamente espetada nas minhas costelas e o Pateta com o revolver encostado na têmpora da Karen-Bafo de Onça. O Mickey entrou primeiro e ligou o carro, logo em seguida entramos todos de uma vez no banco de trás. As portas do carro bateram com força quando Mickey arrancou, quase que no mesmo movimento, o Pateta passou para o banco da frente apoiando o pé na minha perna, mas sem descuidar muito da arma. O helicóptero estava em cima de nós.
A Brigadeiro passava em alta velocidade. Perto dos faróis, Mickey metia a mão na buzina e passava. Não sei como não batemos. Devia ser graça de São Dimas, o padroeiro dos ladrões. Só se ouvia carros brecando. Entramos na 23 de Maio com o helicóptero em nosso encalço.
“Atira na porra do helicóptero, senão a gente tá ferrado!”, gritou o Mickey.
Foi como se ele tivesse apertado um botão. O Pato Donald botou a mão pra fora e deu uns tiros pra cima a esmo. Não adiantou muito. O helicóptero continuou lá em cima.
“Posso tirar a máscara?”, a Karen perguntou e sem esperar resposta tirou a máscara e pôs no colo. Também tirei a minha. Foi um alívio arrancar aquela porcaria do rosto. Também não tinha ido com a cara da Minnie. Aliás, nunca tinha ido. Eles também tiraram a máscara. Estavam todos quietos. Os rostos me foram inesperados. O Mickey tinha uma cara de moleque e o Pateta o rosto mais amargo dos três. O Pato Donald nem precisaria ter posto a máscara pra começar, ele era a cara do Pato Donald mesmo. Estávamos todos tensos, mas agora por causa da velocidade.
“Acho que a gente se deu foi bem”, falou o Mickey com a voz nervosa, virando o rosto pra trás.
“Não sei não”, respondeu o Pato olhando pelo vidro de trás. “Acho que estão atrás da gente”.
O Pateta pôs a cara pra fora da janela, olhou pra cima e disse: “O helicóptero continua lá!” Estávamos passando pelo aeroporto e o Mickey já tinha maneirado bem a velocidade. Devíamos estar só a uns cem por hora, mais ou menos.
O Mickey perguntou para o Pato: “Tinha bastante grana?”
“Deu pra encher as sacolas. Tinha uma porrada de cem e um monte de quina no cofre”. Ele abriu uma sacola e eu e a Karen pudemos ver que estava bem recheada. Até que a profissão de ladrão têm suas compensações. Eu, por exemplo, tava correndo tanto risco quanto eles e com sorte ia, no máximo, ficar vivo. A Karen ia fazer uma reportagem de primeira página que ia ser disputada a tapa pelos jornais, sem considerar artigos para revistas mensais, entrevistas e é claro, um emprego. Nesse momento já estava ocupada em entrevistar os facínoras. Perguntava tudo, desde o porque da escolha das máscaras até as razões sócio-econômicas que os tinha levado aquela vida. Eu estava sem o menor humor. Aliás, como sempre ultimamente. Mas agora, mais calmo ouvia aquilo tudo como se não fosse comigo. De uma certa forma não era mesmo, ninguém tava nem aí comigo, tinha sido assim a minha vida inteira. Existem pessoas que estão sempre orbitando o mundo, sempre lhes falta alguma qualidade que os integre a ele. Nunca me reconheci num anúncio de televisão. Sempre me senti meio ridículo por causa disso.
A conversa no carro estava cada vez mais animada. Animada, não, eufórica. Eles tinham conseguido escapar com um monte de dinheiro. Estava tudo bem pra eles, incluindo a Karen. Todos estavam recompensados. Eu é que estava de alegre na história, um cara sem personalidade, uma espécie de contraponto ambulante pras cenas onde os outros brilhavam, tinha sido sempre assim, eu era a contraluz, o contrapé, ia ser a história de interesse humano, aquele cara que está ali por acaso sem ter nenhuma ligação direta com a ação. O transeunte, o popular daquela história do Veríssimo.
Foi aí que o Pateta viu os carros.
“Porra, tem polícia atrás de nós! Acelera esta merda!”, ele gritou.
Nem precisava ter falado. O Mickey já tinha metido o pé no acelerador.
A situação estava um horror. Só dava pra andar costurando, subindo na guia, brecando e acelerando de repente. Eu estava vendo a hora que alguma arma ia disparar por acidente. Ou então a polícia ia revidar e matar todo mundo.
“Atira neles! Atira neles!” berrou o Mickey. O pateta botou o corpo para fora da janela e deu umas rajadas. Aquela merdinha era uma metranca! Sempre achei que metralhadora era um troço grande. Não dava pra ver se tinha acertado ou não. Eu estava congelado. Não tinha coragem de olhar pra trás. Aliás, mal tinha coragem para respirar. Tive a certeza que não ia sair vivo.
“É melhor vocês se entregarem”, me ouvi dizendo.
A Karen me olhou surpresa.
“Fica na sua, magrelo!”, grasnou o ex-Pato com cara de pato.
Não sei como, mas já estávamos chegando perto de Interlagos. Só se ouvia sirenes. Parecia que todos os carros da polícia de São Paulo estavam atrás da gente.

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Agora era a perseguição. Tinham saído em disparada Brigadeiro abaixo. Se continuassem nessa direção o pessoal na Brasil começaria a perseguição. Assim que eles saíram todo mundo enlouqueceu. O delegado Brandão foi para sua viatura e mandou um rádio avisando o pessoal da Brasil e resolveu ir para a Rubem Berta pela Paulista. Devia vê-los lá pela altura do Ibirapuera. Era um chute, mas era um bom chute. Dito e feito. O delegado deu um sorrisinho imperceptível. Pra alguma coisa servia ter passado a vida na polícia.
A Blazer estava bem mais rápida que os outros carros. Logo apareceriam as outras viaturas. Nem dois minutos depois ouviu as sirenes e, olhando para trás, viu as viaturas o alcançando.
Os bandidos logo perceberam que estavam sendo perseguidos e aceleraram. Ficaram mais desesperados também. Costuravam feitos maníacos, subiam na calçada, freavam, aceleravam, fechavam os outros carros e furavam os faróis. Mas as sirenes e as luzes girando nas capotas faziam com que as pessoas dessem passagem, facilitando a fuga. Mas não tinha outro jeito. Perseguição era assim mesmo. Uma esbórnia. Se ninguém batesse já ia ser lucro.
Eles começaram a atirar. E de metralhadora. Isso não era bom. Não era nada bom. Do jeito que iam as coisas, logo mais os bandidos iam começar ter lança-granada, obus, morteiro. Quem iria imaginar que os bandidos um dia iam estar mais bem armados do que a lei. E, no entanto, era exatamente o que estava acontecendo. Eles estavam sendo atacados de metralhadora.
Na frente do autódromo a Blazer entrou a direita de repente. Foi em direção à represa. Estavam sendo alcançados. Fizera bem de mandar dar pra eles uma Blazer 2.2. Não era páreo pras 4.3 turbinadas da polícia. Ao menos isso. Agora o problema era os reféns. Sabia que seria impossível controlar o tiroteio quando fossem alcançados.

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Mickey entrou a direita na frente do autódromo a um milhão por hora. Achei que a porra do carro ia capotar. A polícia estava nos alcançando. Os tiros do Pateta e do Donald pelas janelas não estavam adiantando nada. Do jeito que o carro pulava e serpenteava não dava para acertar nem em parede, quanto mais na polícia. Pelo menos eles não estavam revidando. O Mickey virou à direita de novo em uma rua de terra e a Blazer quase dá um cavalo de pau. Ele mal tinha corrigido quando bateu de frente. Seco. Fomos jogados pra frente violentamente.
Foi aí que realmente começou a fuzilaria.
Eles desceram do carro, saíram correndo e atirando. A Karen e eu nos abaixamos e não saímos do carro. Eu só ouvia tiros e gritos. E sirenes. Muitas sirenes de carros chegando. O tiroteio era infernal.
Parecia que não ia acabar nunca. Mas acabou. Os tiros pararam, não a gritaria. Abri os olhos e vi a Karen já saindo do carro. Do meu lado, no chão do carro, as sacolas de dinheiro reviradas. Achei melhor sair dali.

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Era assim que terminava. Com morte. Os bandidos não tinham segurado a pressão. Bateram numa árvore. Bem que eles tentaram fugir, mas sabe como é. Não deu. Assalto à banco, formação de quadrilha, seqüestro, fuga, resistência à prisão. O de sempre. Dever cumprido. Esses aí não iam mais encher o saco. Os reféns tinham escapado, o que já estava bom demais. Matar bandido não adianta, tem sempre mais bandido pra tomar o lugar dos que morrem. Mas experimenta dizer uma coisa dessas em voz alta. Chamam você de frouxo e te põem pra escanteio. Besta ele não era. Ficava na sua e ia tocando. Trinta anos de polícia tinham ensinado o delegado Afonso Brandão a não meter a mão em cumbuca. A não falar demais.
Ele gostava mesmo é da sua pequena oficina de marcenaria.
Entrou, acendeu a luz e sentou no tamborete em frente da bancada. Sempre que tinha dias assim ficava com um sentimento ruim dentro. Ficou um pouco com os olhos parados no seu primeiro pato de madeira. Alex. Deu um suspiro fundo, pegou um bloco de madeira novo e começou a trabalha-lo.
Ia tentar esquecer o dia. Como todos os dias.

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A família Disney estava morta. Não quis nem ver. A Karen foi, sempre a profissional, mas voltou mais pálida. Não falou nada e eu também não perguntei. Para mim aquilo era um horror. A violência, a pobreza, tudo. São Paulo estava ficando um absurdo. Por que será que gente com mulher, filhos, amigos, time de futebol, resolve assaltar banco? Não sei. Acho que nunca vou saber. Será a miséria, a falta de educação, de oportunidade. Eu acho que o exemplo vem de cima. Dos governantes. Com tanta gente metendo a mão e se dando bem, os caras caem em tentação e vão atrás do deles. Eu não entendo nada, essa é a verdade. Estava é precisando ir pra casa e tomar um uísque. Triplo.
Depois foi como o previsto. Entrevistas, repórteres, telefonemas, parentada, amigos e etc. Um pouco depois, o esquecimento de todo o episódio. Até hoje de vez em quando um engraçadinho lembra da historia numa roda de bar entre a terceira e quarta cerveja, e algum outro solta o comentário inevitável: “E a Minnie aí no jornal”.
Da Karen não tenho tido notícia ultimamente. Sei que está trabalhando, parece que desta vez cobrindo economia numa revista semanal. Não sei como a campanha das bebidas até que saiu bem sóbria. Por coincidência, a agência ganhou a conta daquele banco outro dia. Pensei nuns conceitos interessantes envolvendo licenciamento de personagens em quadrinhos. Nem eu mesmo consegui achar graça no meu humor.
Comecei a achar que não ia encontrar a Karen tão cedo. Que talvez ela sossegasse o facho e me deixasse quieto. Mas depois pensei melhor: era bom eu ficar preparado, pois se eu conhecia bem a Karen, essa não tinha sido nada, a próxima ia ser bem pior.